AMÁLIA REEDITADA
Tita
19.05.09
Mas porque é que todos nós temos Amália na voz? O que quer isto dizer? Cantamos todos bem? Dentro de cada português existe um grande fadista? Porque não damos todos espectáculos em Paris, Milão, Tóquio ou Nova Iorque? O que é um fadista? Quem é Amália? Onde é que está a graça? A Graça, por acaso, fica perto de Alfama. Amália nasceu em Alfama. Não foi? Eu sinto-me mais perto de Portugal quando vou a Alfama. Acho que tenho que ir lá muito mais vezes do que vou.
O que é ter Amália na voz? É difícil. Ando por aqui às voltas, e só consigo imaginar uma resposta. Ter Amália na voz é ser português porque Amália era o maior exemplo disso. Nova dificuldade. O que é ser português? É melhor voltar à Amália. Esta mulher enorme! Nós, portugueses, somos enormes? Talvez, embora baixotes. Mas a Amália. É enorme. Tão grande que até nos ultrapassa na capacidade de entender o que é só para sentir.
Creio que se, porventura, fosse possível ninguém saber o nome de Amália, ela seria de uma enormidade atroz, ainda assim. Amália era o talento apuradíssimo na pessoa. Pronto.Eventualmente, sei o que quero dizer daqui em diante. Mas tenho que ir ali pôr um disco a tocar. Da Amália. É que não me quero enganar em nada. O que não é possível. Não. Antes do disco, tenho que dizer o seguinte: Amália não era fadista! Amália poderia cantar superiormente qualquer coisa.
Amália era do mundo. E esta é a primeira componente da definição do ser português. Não sei porquê. Porque somos assim. Talvez seja do Atlântico, aqui estendido à nossa frente, juntando os mundos sem querer. Não sei porque somos do mundo. Promíscuos. Não compreendo a nossa lucidez verídica. A real indiferença ao diferente. O desejo de meter sonhos e almas na misturadora. Não sei porque somos tristes, carentes, pequenos e frustrados. Invejosos! Amália não era assim. Era só triste. E carente. O que serve para estabelecer perfeitamente a identidade entre nós e ela. Mais a língua. O português. E o Atlântico. E Alfama.
Estou a ouvir o disco. De momento, ela canta a Gaivota. De facto, isto não é fado. Não pode ser só porque se impõe ali a guitarra portuguesa, tão perfeita e sempre aflita. Não se ouve um único tom "agimbrado" a sair daquela voz impossível. Da voz de Amália. Não deve ser fácil ser assim tão dotado. Percebe-se a sua infelicidade.
Não sei se alguém alguma vez falou nisso, na sensualidade que transpira do canto de Amália. Nunca ouvi uma conversa destas. Talvez não estivesse atenta. Alguém já deve ter falado nisto. Há certas coisas que ela canta que não poderiam ser sexualmente mais envolventes do que um ambiente de cabaret. Há picante e há pecado. Há decadência e ternura. Promiscuidade. Não é a música. Não são as palavras. É a voz. É o poder a imensidão de um espírito que, sem querer e crer se auto transcende, cria e se espalha. É a sexualidade. A vida. Uma luz fosca num candeeiro requebrado. Um cigarro. Uma bebida. A pele. As mãos. A sexualidade. A vida. Tudo na voz de Amália.
Ela dizia que era fadista. Ela sabia o que era o fado. Definia-o como um estado de alma consonante com todos os sentidos e com o mar cheio de sal. A voz de Amália é um barco onde navega uma pega alemã. Um personagem feito por Dietricht. Amália é um Fassbinder mais completo. Se Amália é fadista, então ela mudou o fado. E, assim, eu já gosto muito.