A FACA
Tita
06.01.11
- Querida, porque temos uma faca na varanda pendurada no estendal da roupa?
- É a minha faca de fazer tudo.
- Sim. Mas porque está pendurada por um arame ali?
- É por causa do cabo de madeira. Não seca tão depressa se for para o coiso dos talheres. E também não podia usar uma mola. Tive de improvisar, não é?
- Resolveste isso hoje. Tens a certeza que seca mais depressa no estendal?
- Sim.
- Precisas dela. Cortas comida, rodas parafusos…
- Como bife sem garfo!
- Não. Usas o garfo para segurar o bife.
- Mas meto a carne à boca com a faca.
- Pois… Não achas que alguém pode achar bizarro… assim alguém que venha cá a casa e veja ali a faca pendurada?
- Estás à espera de alguém? Não estás. Nós nunca deixamos ninguém aparecer sem avisar.
- Pois não. Não é bom para a vida dos casais. Só quando os casais não têm vida nenhuma.
- Gosto dos nossos amigos. E da tua família. Gosto muito.
- E eu. Da tua. Dos nossos amigos. Gosto de ter vida própria. De não precisar de ninguém e ter gente de quem gosto convictamente. Faz-me bem estar com todos. E é fundamental estar só contigo.
- Se alguém vier cá a casa não vai estranhar ver a faca ali pendurada. Se nós não achamos, não é?
- Claro. A menos que seja algum canalizador de emergência.
- Como está o braço?
- Melhor. A infecção está a passar.
- Desculpa.
- Não faz mal. Nunca tinha acontecido antes.
- Devia ter lavado como deve ser.
- Não tem importância.
- Tem de ser sempre nos braços?
- Eu prefiro. Fica mais a jeito. Para os meus olhos. Gosto de ver as marcas que me deixas.
- Nunca mais conseguimos. Faço análises de 6 em 6 meses. Sempre negativo.
- Eu queria que ficasses viva. Creio que Deus também. A prova está nos resultados das análises. Tu cortas-me os braços e chupas-me o sangue todos os dias. Com a tua faca de fazer tudo. E não apanhas nada.
- Eu não tenho razões para estar viva depois de ti. Nunca pensei que fosse tão difícil.
- Talvez nunca venhas a ficar infectada. Há casos assim. Com o HIV.
- Eu sei. Mas gosto de beber o teu sangue. Depois, no momento certo, corto a jugular.