Teresa saiu de casa de Madalena com o coração preso nos alicerces das construções que começara a edificar no cérebro quando ainda falava com ela. No entanto, o temor enredava-se-lhe à volta dos pensamentos positivos. As decisões que tinha em mente eram apenas isso. Decisões. Talvez fossem até menos do que isso. O cérebro exprimia declarações de boa vontade. Mas o coração retraia-se. Eventualmente, o facto de ser mãe poderia pesar alguma coisa. “Os pais, pelo bem dos filhos, devem aprender a controlar as suas próprias emoções.”. Por outro lado, Teresa era uma mulher que acumulara grande experiência na arte de sufocar sentimentos. Poderia sair-se bem agora.
Na manhã seguinte levantou-se tarde. Na verdade, não tinha dormido mais do que umas poucas horas desde que o sol rompera. Passara a noite a convergir e a divergir consigo mesma. E o sono não chegou. Quando entrou na cozinha, encontrou a filha. Sobressaltou-se de forma invisível.
Teresa: Já chegaste?
Clara: Sim. Agora mesmo. A mãe acordou tão tarde. Não é nada normal. Como se sente, mãe?
Teresa: Ah! Eu estou ótima. Estava só muito cansada. Precisava de dormir. Mas ainda bem que estás em casa. Precisamos de ter uma conversa séria.
Clara: O que se passa mãe?
Clara compreendeu que a mãe lhe vinha falar outra vez de Joana. Sentiu-se contrariada. “Para quê falar agora? Passou tão pouco tempo.”. Acreditara que que a mãe não voltaria tão cedo ao assunto. Porque fora a mãe quem o dera a entender. Estava habituada desde sempre às vontades inalteráveis de Teresa. Por outro lado, não queria falar pois o levantamento de emoções que operara dentro de si não lhe abria caminho para poder projetar raciocínios bem organizados. Mas Teresa já tinha aberto a conversa. E quando finalmente fixou a filha, parecia mais pequena, mole de músculos e com a cara pisada. Os olhos estavam baços, como se tivessem sido virados do avesso.
Teresa: Afinal o que queres tu, filha?
Clara: Eu? Eu só quero deixar de sofrer por sua causa.
Teresa: Tu? Tu estás a sofrer por minha causa? Então não estás envolvida numa grande paixão? Além disso, eu rejeitei-te?
Clara ficou muda. Apenas lhe lançou um olhar ressentido. Teresa captou-o e reagiu com revolta.
Teresa: Há certos fenómenos que são muito curiosos. Tu só viveste dois anos com o teu pai. Sucede que não podiam ser mais parecidos. É tão fácil para ti falar de amor e de dor. Como se os sentimentos fossem coisas fáceis de gerir. Tal como para o teu pai, é fácil para ti sentir. É fácil sofrer. Para ti nenhuma destas coisas, destes momentos, merece qualquer género de solenidade ou um momento de recolhimento. É tudo tão claro para ti. Talvez o teu nome venha daí. Talvez te tenha sido dado como uma projeção daquilo que havias de ser. Uma pessoa clara. Límpida e transparente. Foi o teu pai que escolheu o nome.
Teresa não queria ter dito nada do que disse. Por isso agora estava irritada consigo mesma. Ao mesmo tempo, transtornava-se com o facto de sentir culpa sobre o que o destino reservara para a filha. Não fora capaz de contornar o destino. “Ela é filha de uma lésbica. Só podia ser lésbica.”. Tinha raiva de si própria. E da vida. Fosse como fosse, agora era o momento para dizer à filha que estava pronta para a aceitar como era.
Clara aproximou-se da janela. Olhou para a passadeira de vida corrente sem expressão concreta. As pessoas pareciam coisas. E as coisas obstáculos às pessoas. Tudo se mexia lá fora. O cérebro parara-lhe nesta monotonia de cores diversas que pareciam insistir sempre no mesmo movimento. Teresa abriu a boca para falar. Clara estava habituada ao modo como ela o fazia. Por isso não se alarmou. A última palavra de cada frase de Teresa era sempre cortada na derradeira letra por uma espécie de golpe desferido pelos lábios. Em princípio, ela não deixava os sons voar. Não os seus.
Teresa: Podes vir até aqui para falarmos em termos?
Sentaram-se na mesa da cozinha. Clara pousou distraidamente os olhos sobre o tampo. “Esta é mais uma das peças que pertencia à avó Amélia”.
Clara: Porque é que a mãe ainda não fala com os avós?
Teresa: Porque vens agora falar-me disso quando o assunto era outro?
Clara: Não sei. Lembrei-me da avó Amélia.
Teresa mostrou-se impaciente.
Teresa: Pois bem, não falas com os teus avós paternos porque eles jamais mostraram interesse em falar contigo. Lamento muito mas é assim. Desde o funeral do teu pai que não voltámos a falar. Eu nunca mais liguei ou apareci. E eles a mesma coisa. Nem para saber como tu estavas. A tua avó não me suportava. E depois, de alguma forma, achou-me responsável pela morte do seu querido filho. Entendeu que eu não o fiz feliz. Ela sempre soube que eu não o amava. O que era verdade. De qualquer forma não lhe aceito tanto rancor subsequente. Por conseguinte, é gente com quem não me interessa falar.
Só depois de dizer é que Teresa realizou sobre o sentido das suas palavras.
Clara: Desculpe. Não o amava? Então amou quem na sua vida?
Teresa: Não foi isso que eu quis dizer. Eu adorava o teu pai.
Clara: A mãe disse que não o amava.
Teresa: Clara, desculpa mas eu estou um pouco transtornada pelas razões que conheces. Falei rápido demais. Fui um tanto inconsciente. Claro que amei o teu pai. Á minha maneira. Mas amei. Importas-te de mudar de assunto? Prometo que te vou explicar isto como deve ser. Mas agora não é o momento.
Clara: Está bem, mãe. Mas, então, já que estava também a falar de incapacidade de perdoar, gostava que me falasse sobre isso.
Teresa encheu o peito de ar e expirou de forma audível.
Teresa: Ora ainda bem. Falemos então do que importa. De ti e da Joana.
Clara: Sim. A Joana.
Teresa: Não é necessário sublinhares o nome. Mas enfim… Diz-me o que se passa contigo.
Clara: Mão, já lhe disse. Estou apaixonada pela Joana.
Teresa: Enfim, compreendo que alguma coisa muito forte tu sentirás por ela. Algo que te está a alterar…
Clara: Algo que me está a melhorar.