CAR CRASH
Tita
18.02.08
Ontem tive uma insónia extraordinária. Eram cinco e meia da manhã, e eu estendida na cama, de olhos muito abertos para o tecto escuro, cheia de uma energia cerebral. Sentia-me bem. Calma. Lúcida. Ás cinco e meia da manhã, sim.
Há muito (mesmo muito) tempo que não me sentia assim. Quando era pequena, e até ao fim da adolescência, costumava ir para a cama uma hora antes do sono para pensar de luz apagada sobre os meus problemas. Era assim que os resolvia, e adormecia, por fim, perfeitamente esclarecida sobre tudo o que havia para fazer. Por este processo podia manter a calma e o controle sobre as coisas. Tudo estava muito bem organizado. Assim, eu era uma criatura muito independente.
O meu pai também é assim. Nunca me disse. Mas eu adivinhei nele também esta rotina quando, em dadas alturas, fui ao quarto e o vi a olhar para cima com as mãos na almofada, aconchegando conjuntamente a nuca. Ha coisas que não fazemos por imitação, mas pela força dos genes. Creio eu.
Ontem não quebrei o ritual pós-adolescente de ler antes, e até cair a dormir. Ontem choveu pesadamente por horas e horas. Acordei às cinco e meia da manhã por causa dos estrondo dos trovões. Gosto do barulho da chuva pesada que cai continuamente. E dos trovões. Há uma certa sensação de limpeza profunda que me envolve nestas situações. Há um certo alívio. Como se o lixo e outros detritos fossem inapelavelmente arrastados para longe, ocorrendo a possibilidade de começar tudo de novo.
Mesmo que não tenhamos culpa sobre os eventos negativos, isso é um dado pouco relevante porque temos sempre que ter a capacidade de combater os seus efeitos agindo. Talvez a objectividade seja o instrumento racional mais útil que se pode ter. Agir libertando o fundamental do acessório e, dentro do fundamental, fazer as escolhas que se impõem.
Foi com um certo prazer que reflecti sobre o meu acidente mortal. Para mim, apenas potencialmente mortal. Para outros, mortal de facto. Ontem revi o choque, o sangue, as seringas, os tubos e o tribunal. Tenho orgulho em mim porque fiz tudo muito bem. Desde o momento em que percebi que ia ser abalroada por um monstro branco desorientado, até ao dia da audiência, onde convenci o colectivo de juízes de que o homem era inapelavelmente culpado. Pelo meio há um dreno espetado no meus pulmões que tenho alguma dificuldade em esquecer. Creio que foi o que mais me doeu.
Tudo aquilo que acontece apenas aos outros, acontece-nos a nós, embora nem suspeitemos disso. Os outros somos nós para outras pessoas. As estatísticas sobre acidentes rodoviários em Portugal são perfeitamente assustadoras, embora não nos assustem porque achamos que os outros não somos nós. Todos os dias morre uma pessoa nas estradas portuguesas. Este dado, só por si, deveria bastar para compreendermos que não existe qualquer distância que nos separe dos outros. Porém, não basta. Assim, andei uns tempos a reflectir no facto de, a dada altura da minha vida, ter entrado para as estatísticas . Porque razão me teria acontecido uma coisa dessas? Creio que ser um número público de tragédia, na cabeça de muitos, é o pior que pode acontecer a uma pessoa.
Recordo Beethoven, o surdo, para sustentar o profundo desprezo por probabilidades. Probabilidades são representações sobre possibilidades. Logo, não acredito na estatística, mas nos comportamentos mais adequados. Beethoven escrevia música. Isto é o comportamento adequado para um surdo que, mais do que tudo, quer compor.
O melhor movimento que podemos fazer é aquele que nos faz chegar mais perto de nós próprios