Madalena: Depois da primeira, uma ou outra paixão te pode submeter. Apenas não logrará os efeitos daquela. Sobretudo os destrutivos. Em primeiro lugar, porque não terá a seu favor o fator surpresa. O teu cérebro já não se deixará levar. E a ti falta a boa vontade. Agora tu testas tudo. Garantes-te a ti própria contra a ilusão. E foi assim com a Ana. Ela entrou dentro de mim às suas próprias custas. Nem tudo nela era brilhante ou luminoso. Nem tudo era como eu gostava. Mas muita coisa era.
Teresa: Mas nós nunca testámos o nosso sentimento na tal realidade deslizante que é o dia-a-dia. Na verdade, não sabemos se ele resistiria, ao contrário desse teu amor de segunda água. Tu disseste que me pintaste das cores mais que mais te convinham.
Madalena: Tu foste uma ilusão. Portanto, tu foste uma desilusão.
Teresa: Ora, isso de novo! Dizes que a Ana entrou em ti às suas próprias custas. Que nela nem tudo era brilhante ou luminoso. Nem tudo era como tu gostarias. Então o que quer isto dizer senão que a má vontade, pelo menos no teu caso, era anterior a ela?
Madalena: Mas eu disse isso. Que já não tinha boa vontade quando ela chegou.
Teresa: Porque não aceitar que tu embarcaste no caso por necessidade? E é assim tão difícil ver que não estavas preparada para te entregar? Não tenho dúvidas que essa Ana tinha qualquer coisa. Poi se ela conseguiu fazer-se amar mesmo contra a tua vontade. Se nem tudo era como tu querias, brilhante e luminoso, e devia ser, então é porque te estava vedado ver. Amaste-a com um amor de baixa qualidade.
Madalena: Que atrevimento… Onde queres chegar?
Teresa: Que a dor que o teu ressentimento não deixou aniquilar te lixou. Quer dizer, em termos práticos, o teu ressentimento lixou-te. Se eu não vivi por umas razões, tu não o fizeste devidamente por outras.
Madalena: Realmente, ouvir isso de ti é uma ironia. Se isso tivesse acontecido seria por culpa tua. Mas não sucedeu, descansa. O que me ficou de ti não foi ressentimento mas lembrança da dor. No mais, Teresa, ainda assim vivi muito mais do que tu. Porque tu não viveste nada. E vivi com mais qualidade. Porque o que tu viveste foi uma agonia. Santo Deus, tinhas que dormir com o Diogo!
Teresa: É verdade, querida. Tinha que dormir com ele. Queres café?
Madalena: Quero. Vamos tomá-lo lá dentro. Na sala de estar.
Teresa: A sala de estar. Gostava muito dela. Mudaram muita coisa?
Madalena: Aqui pouca coisa mudou. Vem.
Sentaram-se. Acomodaram-se no mesmo maple de dois lugares de há vinte anos. Continuava com aquele aspeto muito macio, muito penetrável. Talvez ambas necessitassem de se sentir mais aconchegadas.
Cruzaram as pernas de forma que os respetivos joelhos apontavam direções convergentes. Os de Teresa estavam expostos por baixo da transparência de um par de meias da cor da pele. Madalena usava jeans. E sorria com a chávena e o pires de café seguros nas suas compridas mãos brancas cheias de veias muito azuis. Teresa olhou-as. Aquele conjunto de veias lembrava-lhe uma raiz de árvore nova. Aliás, as mãos de Madalena podiam comparar-se com as próprias árvores no outono. “As árvores nuas da Praça de Londres”. Talvez também por causa dos dedos. Longos e finos. Que se abriam, cortando espaços, amplos espaços, enquanto ela falava. Teresa deu conta dos próprios ombros doridos. A conversa que vinham até ali atravessando desgastara-lhe os músculos que agora sentia pesarem sobre os ossos. O corpo fora atravessado pelo tempo que se comprimira demasiado para passar. Aqueles vinte anos não representavam isso no momento. Há muito que as mãos de uma e de outra não descobriam nada firme onde tocar. Num determinado instante perfeitamente isolado de todos os outros, Madalena pousou sobre o braço de Teresa, apertando-o firmemente entre os dedos. Foi o momento em que repentinamente se calaram e correram os olhares para dentro uma da outra. O tempo parou. As bocas molhadas misturaram-se. O desejo pulsava intensamente, sacudindo-lhes o corpo. Levantaram-se ao mesmo tempo do sofá. As bocas prenderam-se ainda mais quando elas pressentiram que iam começar a voar. Colaram-se os corpos por força do impulso irresistível que as levantava no ar. Perderam-se das mãos trémulas que divagavam. Teresa ouviu-a dizer com nitidez.
Madalena: Vamos para a cama.
Teresa pode imediatamente aliviar-se da carga que trazia. Mas não de toda.
Os espaços onde as palavras ficaram ausentes eram demasiado densos. Entraram no quarto e despiram-se. Materialmente distantes. A parede despida onde a cama baixa se encostava estava iluminada pela lua redonda, expondo-se. Elas olharam para lá. E no preciso instante em que apontaram o olhar o filme começou. Sob a luz da lua, a parede branca refletia nitidamente aquelas cores mudas mas cheias de vida. As imagens não tinham som. Mas compreendiam-se os gestos perfeitos, completos. E este filme que rodava dizia-lhe que o tempo quando quer pode parar. Que os seus vinte anos não chegaram a passar. Os que tinham e os que correram. Apertaram as mãos para juntas darem um passo em frente. Na direção do tempo colorido parado na parede branca sobre a cama do quarto de Madalena. Mergulharam lá, afundando deliberadamente os corpos que iam juntos. Confundiram as imagens com os braços e as pernas. A pele. Os fluídos. Os sorrisos inaudíveis. E por fim respiraram profusamente. Mas em silêncio.
E depois o tempo rolou, escapando-lhes afinal. Deitou-se sobre a cama. A lua entretanto mudara de posição. A luz despediu-se da parede e inclinou-se sobre a cama desfeita. O ar encheu-se dos sons ofegantes. O tempo rolou sobre elas e era novo e presente.
Madalena: Estás a sentir?
Teresa murmurou qualquer coisa com sentido afirmativo.
Madalena: E a gostar, querida. Estás a gostar?
Teresa não era capaz de responder. Não se concedia liberdade. Colou a boca à dela e prendeu-lhe a língua. Para a calar. Madalena investiu por isso ainda mais sobre ela.
Madalena: Eu perguntei se estavas a gostar. Tens de me dizer.
Teresa: Querida. Eu não vou aguentar… Cala essa boca linda, por favor.
Madalena: Sabes, já não me importa que tu morras. Não me importa porque hoje posso morrer contigo. Diz-me.
Teresa: Muito.
Madalena desceu com a boca até à zona molhada e mais quente do corpo dela. Aí desfolhou em agitação as páginas do sonho, procurando por muito tempo um pequeno capítulo de um livro. Da morte. Da libertação. Sem se cansar sugava-lhe o corpo para lhe engolir a alma toda inteira. Não podia parar. Não até ela se desfazer. Buscava a suprema felicidade de ficar com ela morta nos seus braços, A única forma de jamais a voltar a perder. E de morrer nos braços dela. Para não pensar que tinha de fugir-lhe. Depois abriu as pernas para a boca de Teresa entrar. Ao abrir sentiu o corpo que oferecia escorrer sobre o rosto dela. O tempo decidiu novamente parar por um pouco, ficando desta vez fora do passado, do presente ou do futuro. Pelo momento em que as gargantas se abriram no centro da tremenda explosão que se deu. Logo depois o tempo prosseguiu no seu ritmo muito próprio.