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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

FOI SÓ O AMOR


Tita

25.10.23

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Sei que uma pessoa que me chegou a amar, a partir de um momento preciso, que eu não sei precisar, desejou intensamente parar com isso.

Claramente, cometi erros muito graves. Havia uma criança. Depois veio um cão. A minha mãe que ia morrer, mas eu não imaginava, e aquele cão que, com todo o imenso amor que tinha por ela, comprei para mim por causa dela. Havia a dor e a culpa que a minha mãe sentia porque eu deixara de ter o meu cão. Perdeu-o. Nunca se perdoou.

Até parece que, afinal, sabia que ela ia morrer de surpresa daí a um ano ou menos. Embora, como disse, não pudesse saber. Pareceu-me muito importante mostra-lhe um cão igual ao que era meu. E partilhá-lo novamente com ela. Para se apaziguar com a prova de que eu nunca perdi a confiança no amor que ela tinha pelo cão e por mim. É verdade. Quando se ama tanto uma pessoa como eu a amava, não sucede isso em nenhuma circunstância. Duvidar do amor. Dela.

Antes de morrer, a minha mãe não estava cá. E eu tinha de guardar bem o nosso cão. Para lhe dar a prova de que falei. Que o cão era meu. Que, por isso, estava tudo bem comigo agora.

Foi esta razão que não me deixou deixar que uma criança, que era uma criança cheia de afetos, pudesse ser do cão. Daquele cão muito pequenino que foi morar lá para casa. Jamais pensei ou vi crueldade em mim. Mas factualmente foi exatamente isso que aconteceu.

Hoje ainda não sei porque tinha de ter aquela exclusividade. Não me parece que a minha mãe concordasse com isso. Mas, antes, com o contrário. Que era fundamental deixar a criança brincar à vontade com o cão. Eu também sinto assim. Porém, somente hoje e também antes do que aconteceu. Nunca percebi o que sentia naquela altura em que estava de facto partida.

Parece que a vida se resume basicamente a isto. Momentos e factos ou eventos. Tudo depende imenso da conjuntura e do estado emocional de cada pessoa. E, no entanto, é verdade que, para quem está por perto, isso não pode pesar. As pessoas partidas têm de ficar ao longe. Para evitar fazer mal a quem está por perto.

Uma mãe não pode deixar que se faça o que eu fiz à sua filha. Esta mãe, na altura, deixou. Porque, por amor, estava a tentar perceber e encontrar-se no meio de várias mensagens contraditórias. E, sobretudo, sentimentos. Ela desejava pensar que eu não podia ser assim. Mas eu estava a fazer o que fazia. E, portanto, era exatamente assim.

Só que ela, em nenhum momento do tempo que durou tudo isto, foi capaz de me dar uma violenta bofetada na cara. Por medo de me perder. E deixou-se desproteger a filha.

Eu não tinha noção nenhuma dor e, eventualmente, até do receio que causava em ambas. Estava cega de mim mesma. Tudo em mim doía e era-me impossível acordar. Nem sabia que podia tentar.

Por incapacidade involuntária. Para me chamar a mim, ela tinha de me dar o estalo na cara de que falei. Porém, o facto é que nem sequer levantou a mão. De maneira que, até certa altura, não soube como se perdoar. E, no entanto, por uma questão de sobrevivência, tinha de o conseguir.

Esperou o tempo para si necessário. O tempo que levou a ser capaz de iniciar o irreversível processo de me desamar. Fez tudo bem e teve a paciência e a resistência exigíveis para conseguir, como conseguiu.

A minha mãe morreu muito antes do cão. Ele partiu no dia 25 de março de 2023. Perto de onze anos depois dela. Era a idade que ele tinha. Então, talvez ele tivesse apenas uns meses quando conheceu a sua avó. A única pessoa a quem ele também pertencia por meu desejo exclusivo e exclusivista.

Ela estava tão doente que mal conseguia estar viva. A minha mãe já cá estava em casa. Do sofá olhava para o cão. Era um olhar de quem não pode e tem tanta pena. E, então, fazia por não olhar. A certa altura riu-se com qualquer coisa gira que ele fez. Por fim, desistiu completamente dele. Espero que tenha ficado sossegada por eu finalmente ter o cão. Custa-me não ter a certeza.

Sei que outro grande amor, embora de natureza própria, há muito tempo que morreu. Mas eu soube de tudo apenas há uns dias ou semanas. O que vale é foi apenas o amor. Graças a Deus!

DE JOELHOS


Tita

11.04.20

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A minha mãe preocupava-se com a aparência. No entanto, nem tanto assim, a partir de certa altura - que não era a da velhice porque a minha mãe não chegou a tanto. Por isso não era incomum que se apresentasse com as camisas mal abotoadas ou as sandálias com as presilhas fora dos furos certos, por exemplo. Então, lá estava eu arrumar tudo. E ela, dócil, permitia. Pelo meio, eu fazia as minhas observações sobre o assunto, alertando, por um lado, e dando conselhos, por outro. Ela, por seu lado, sorria candidamente e punha-se muito distraída, como era seu hábito quando as questões não eram fundamentais. Ambas percebíamos que aquilo haveria de se repetir para sempre. Não. A minha mãe não tinha problemas. De saúde mental, quero dizer - faço esta advertência porque, não querendo trair a sua memória, temo que o que acabei de descrever possa induzir em erro para quem leia isto.

Uma vez achei que ela andava um bocado triste. Por isso, e ao invés de reconhecer que havia razões conjunturais para tanto, que havia, convenci-a a ir comigo ao meu terapeuta da altura. Pedi para ficar no gabinete ao lado dela. Eles permitiram. E foi só aí que eu reparei que ambas as presilhas das sandálias estavam soltas. Repreendi-a com a propósito. E depois ajoelhei-me para lhe apertar os sapatos. De resto, a consulta correu bem. Saiu de lá com a receita de um antidepressivo levezinho que jamais tomou. O certo é que na sessão seguinte o terapeuta me falou da impressão com que ficara. Nunca vira tanta ternura que expressava em mim aquele tipo de amor profundo. Como é que se tinha percebido isso tudo? Na verdade, eu só me ajoelhei diante dela.

 

COISAS PARECIDAS


Tita

04.06.19

O tempo está instável como eu já fui. Muitas vezes, a minha mãe dizia que se ia embora de casa. Hoje percebo que era coisa que lhe saia pela boca quando estava enervada com o meu pai. O que igualmente sucedia muitas vezes. Chegava mesmo ao ponto de se ausentar, de vez em quando, para casa da irmã mais velha. Depois voltava, como sempre.

A questão é que eu era um bocado pequena demais para não encarar com a máxima seriedade aquelas declarações e atos. Para mim, a minha mãe fazia essas coisas quando estava, por alguma razão, farta. Porque, veja-se, as discussões nem sempre começavam por causa dele.

Bem, e, assim, logo que comecei a namorar mais a sério, passei a vivenciar coisas parecidas. Não iguais. Parecidas. Sem desconfiar que estava a mimetizar, começou a estabelecer-se em mim um padrão de comportamento específico: o meu saco começava a encher lentamente quando as vivências, ainda que prazerosas, eram demasiado intensas. Depois, quando o meu saco já estava a meio, eu, por causa disso, por estar a meio, principiava a sentir uma espécie de impaciência. Por fim, tinha que me afastar. Durante um dia ou dois. Mas tinha que me afastar. Quando já não sentia o ar a entrar, a fluir e a sair dos pulmões com a mesma fluidez e leveza. O corte poderia surgir de uma discussão. Normalmente, era assim. Mas se a discussão não surgia, eu pirava-me da mesma maneira. Para voltar. Claro que me lixei seriamente com isto. Uma vez ou outra. Sofri.

Hoje sou estável como o tempo quando está desse modo.

AZUL - MÃES E FILHAS


Tita

27.10.16

Apenas para dizer que cheguei tarde a casa porque hoje tive sessão de psicoterapia after work. Falámos muito sobre a minha mãe. De como ela era e da relação que nós tínhamos. Do amor profundo que eu tenho por ela. Por isso hoje não me apetece entrar por aqui adentro a explicar as razões de Teresa. Razões que estão intimamente ligadas à relação dela com a filha. Desde o meio do livro que eu escrevo os capítulos diariamente sem um esboço onde me possa apoiar. Não é muito fácil. Sinceramente não sei o que vai suceder entre a Teresa e a Madalena. Apenas sei que hoje não posso adiantar nada. Amanhã publico. Sem falta. Obrigada.

AZUL - Cap LXI


Tita

15.10.16

Teresa estava imóvel. Pequena, que não era, sentada naquele sofá enorme da sala grande a olhar para o telemóvel. Como se Madalena tivesse desparecido por ali. As lágrimas secaram totalmente assim que desligaram. A luz era ténue. Deixou-se cair para trás e largou o telemóvel no chão. Dobrou um braço sobre a cabeça e apontou os olhos para o teto. Ficou a ver as imagens da sua vida toda que passavam céleres naquele écran branco. Por isso parecia que ia morrer em poucos momentos. Fazia-se ali um balanço. Os resultados do mesmo, segundo a sua interpretação, indicavam que tinha errado muito. Subitamente ouviu as lyrics: I kinda thought that I'd be better off by myself/I've never been so wrong before/You made it impossible for me to ever/Love somebody else.

Clara: Mãe.

Teresa solevantou-se de um passo. Momentaneamente sentiu-se estrovinhada.

Teresa: Estavas aí? Puseste música.

Clara: Sim. Mãe. Porque não foi falar para o seu quarto? Era uma conversa íntima. É assim cá em casa. Foi a mãe que me ensinou.

Teresa: Não sei. Achei que não estavas. Não sei.

Clara: Acontece que eu ouvi tudo.

Teresa: A que propósito, menina?

Clara: A propósito de vir a caminho da sala quando a mãe lhe ligou. Podia ter voltado para trás. Mas queria muito saber como ia ser. Estive ali a torcer para que tudo corresse bem. Estava preocupada consigo. Perdoe-me.

Teresa: Não perdoo-o. Mas, já que ouviste, percebeste que foi o fim. Certo?

Clara: Não. Não percebi isso. Percebi que a Madalena joga muito duro. E que a mãe acreditou cegamente em tudo o que ela lhe disse. Eu vi como sofria. E as respostas que ia dando. Também chorei. Mãe. Não suporto vê-la sofrer tanto.

Teresa: Oh, querida! Para que te foste meter nisto? São os meus problemas. Eu sou adulta.

Clara: Não mãe. Ainda bem que ouvi. A mãe não está capaz de raciocinar. Está numa fase em que só sabe fazer autocritica. Está a enfraquecer-se assim. Eu sei que a mãe não tem um amigo com quem possa partilhar. Ninguém que a ajude a recompor-se. Eu sei que também sou culpada pelo seu estado atual. A mãe está extenuada. É preciso invertermos aqui os papéis. É preciso que eu cuide de si agora.

Teresa: Meu amor, não há nada que tu possas fazer. Mas agradeço-te.

Clara: Mãe. Não me escutou. Eu disse que a Madalena joga muito duro. É óbvio que não ouvi o que ela disse. Mas ouvi as suas concordâncias magoadas com o que ela ia dizendo do lado de lá. Desculpe mãe, mas a que propósito duas pessoas confessam que se amam para o resto da vida e vão separar-se? A conversa sobre o amor do passado, que morreu, não tem sentido nenhum. Se vocês se amam hoje, é porque aquele amor do passado as juntou de novo. A idade é outra mas o sentimento prolongou-se até hoje. Com o que se passou entre ambas no presente, foi dada continuidade ao amor. Até parece que morreu um amor e nasceu outro que nada tem a ver com o primeiro. Não há aqui dois sentimentos. Há apenas um. Que conversa fiada a da Madalena. Depois disseram que se não tivessem conhecido no passado, este amor do presente seria o amor das vossas vidas. Veja bem! Não acha que isto quer dizer que o amor ente ambas nunca morreu?

Teresa: Filha… como tu és lúcida! Estou a compreender. Estou a compreender que a Madalena tem medo de mim. Aliás, ela já mo disse. Ela tem medo, sim.

Clara: Mas não deve ser medo de passar pelo mesmo. É o trauma. Creio que ela lhe perdoou. Mas…

Teresa: Mas não é capaz de ir mais longe do que isto.

Clara: Ela também deve estar a sofrer um bocado, mãe.

Teresa: Mas desta vez vai ficar a sofrer. Não vou procura-la. Ela tem que fazer como eu fiz. Libertar-se dos fantasmas. Para isso é necessário ver se vale a pena ceder ao medo. Ou se o nosso amor é maior do que isso. Depois das coisas que ela me disse. Da decisão que ela tomou. De se separar de mim de vez, não vou procurá-la. Se ela tiver caráter, vai conseguir tirar-nos desta dor.

Clara: E se não tiver?

Teresa: Se não tiver, é porque foi um grande azar tê-la reencontrado.

Clara: Nem sei mais o que dizer. Temo por si. É só isso.

Teresa: Minha filha querida, já disseste muito mais do que era suposto. Estou muito orgulhosa de ti. E grata. Estás madura, querida.

Sorriu-lhe com ternura.

Teresa: Olha, e a Joana, já lhe ligaste?

Clara: Não. Estou aterrorizada.

Teresa: Mau!

Clara: Eu sou como a mãe. Ótima a resolver a vida dos outros. Desde o princípio com a Joana que estou habituada que seja ela a vir ter comigo.

Teresa: Era o que faltava que ela te procurasse. Mandaste-a embora.

Clara. Pois foi. E o pior é o que eu lhe disse. Já me lembro bem. Foi um monte de horrores.

Teresa: De que tipo?

Clara: Do tipo colocar tudo em causa. Os sentimentos, sobretudo.

Teresa: Passaste-te, portanto. Desculpa, querida. A culpa foi minha.

Clara: Não. A culpa foi minha. Eu é que sou responsável pela minha relação. Ela deve estar devastada.

Teresa: E tu como estás?

Clara: Eu? Sem apetite. Sem estímulos. Triste.

Teresa: Filha, está na hora de acabar com isso. Pelas duas. Vocês não merecem estar assim.

Clara: Nem sei que palavras vou usar quando ela me atender o telefone. Isto se atender.

Teresa: Vai atender e ficar feliz. A Joana não é uma miúda marcada. Não te procura porque é o correto a fazer. Tem que dar tempo à tua loucura. Mas estou certa que o que ela quer é que voltes para ela como eras antes.

Clara: Confio em si, mãe.

 

AZUL - Cap XLI


Tita

02.10.16

Teresa fez ecoar um riso que deitou pela garganta fora como se fosse um grito.

Teresa: A tua relação com a Joana? Eu estou completamente incrédula!

Clara: Com o quê, mãe? Para que está a criar esta situação, mãe? A mãe já sabia.

Teresa já não ria. Mas raciocinava mal.

Teresa: Olha Clara, há uma enorme confusão aqui. Muito maior do que imaginas. Seja como for, garanto-te que temia mas não sabia de nada.

Clara sentiu a cabeça a rodopiar.

Teresa: Não te imaginava atreita a semelhantes caprichos.

Teresa sentia-se ultrapassada pela própria vida. Sentia a alma inerte e o espírito cego.

Clara: Caprichos?

“Sexo. Meu Deus! A mãe está a pensar em sexo. Em mim e na Joana a fazer amor.”. Foi tomada imediatamente por recordações do seu próprio corpo nu sobre a cama cheia de odores no quarto de Joana onde, por todos os cantos, tinham sido decalcados ainda há poucas horas os mais prodigiosos prazeres. Prazeres que se viam agora tatuados sobre a sua pele. Escondeu as mãos. Invadia-a um nervosismo profundo. A partir do ventre, começou a formar-se uma emoção crescente que subiu até à garganta na direção da sua boca. Deixou-se cair no sofá, quedando-se horrorizada com o que lhe estava a acontecer. Sentiu urgência em controlar-se, Mas as gargalhadas começaram a sair-lhe pelos olhos em forma de lágrimas. Tinha o rosto desfigurado pelo esforço. Ria e chorava ao mesmo tempo. “Não pode estar a acontecer-me isto”. Tinha cada vez mais vontade de rir. Pregou os olhos no chão e ficou ali. Naquele sofrimento absurdo.

Por seu lado, Teresa segurava no seu rosto empedernido um olhar aparentemente muito sério.

Porém, para Clara, a imobilidade da mãe era um estímulo acrescido para o riso. Que não afrouxava. Ria porque a mãe tinha deixado de ser mãe de uma criança. Clara era agora uma mulher cujo coração estava cheio de espantosas novidades e o corpo vivia no seio de um amor arrebatado onde todo o prazer é possível e concretizado. A sua imagem da filha de Teresa estava desfeita. Porque a mãe tinha os dados e já podia imaginar tudo.

Clara: Desculpe estar a rir-me, mãe. Desculpe.

Entretanto, Teresa ia recuperando. Apesar da tragédia que transportava, o destino apagara Madalena momentaneamente da sua vida. Assim, Teresa sentia que não tinha nada a revelar à filha. Sem confissões a fazer, Teresa mudara-se para um cenário de silêncio totalmente fechado. Deixou de ser possível ver-lhe o rosto. De fora ainda se ouviam os risos e os soluços da filha. Mas foi assim que Teresa pôde fazer com que Clara se sentisse muito só. Presa no fundo de uma gruta escura, vendo-se a rir de coisa nenhuma.

Teresa: Agora que estás mais calma gostava que me contasses o que realmente se passa.

Clara: Já lhe disse, mãe.

Teresa: Tu estás a dar-me factos. Coisas decididas. Não me perguntas o que eu penso?

Clara: Diga-me o que pensa, mãe.

AZUL - Cap XXXV


Tita

28.09.16

Quando Teresa chegou a casa, Clara já lá estava. Como sempre. Esperava por ela estendida no sofá. Via televisão. Como se não tivesse estado a tarde inteira com Joana. Teresa passara a noite com Madalena. Agora estava em casa para jantar com a filha e passarem o serão juntas.

Teresa: Olá, meu amor.

Clara: Olá mãe. Vem cedo para o que é costume.

Teresa: Queria estar contigo. Tenho saudades tuas.

Clara: Pois. Eu também. Mas a mãe agora resolveu passar as noites fora.

Teresa: Eu não passo as noites fora, Clara. Fico algumas noites fora.

Clara: Nunca a mãe passou tantas noites fora. Além disso, acho-a diferente.

Teresa alarmou-se

Teresa: Como assim, menina?

Clara: Anda diferente. Dá a impressão que está um bocado distraída.

Teresa. É curioso que digas isso. Porque diferente estás tu. Pareces um bocado apática. Além disso, deixaste de usar pijama.

Clara: Estou apática porque estou em época de frequências. Mato-me a estudar. E não deixei de usar pijama.

Teresa: Não? Então explica-me esses calções curtíssimos e essa camisola de alças. Estamos em pleno inverno.

Clara: A mãe sabe perfeitamente que não faz frio aqui em casa. Temos o ar condicionado.

Teresa: Mas porque deixaste de usar pijama? Desde pequenina que tu adoras vestir o teu pijaminha.

Clara: Está bem, mãe. Deixei de usar pijama. Porque já não sou pequenina. Aliás, sinto-me bastante mais crescida.

Teresa: Sim? E o que te fez crescer assim tão de repente?

Clara: A idade, mãe. As coisas acontecem com a idade.

Teresa: Não estejas a brincar comigo, menina.

Clara: Sabe bem que eu tenho demasiado respeito por si. Jamais brincaria consigo. Além disso, a mãe mudou de assunto. Quem começou por dizer que estava diferente fui eu. Até parece que disse alguma coisa grave.

Teresa: Deixa-te de imaginar coisas. Eu não estou nada diferente. Eu sou uma pessoa equilibrada e constante, tu sabes.

Clara: Sei. Mas creio que desta vez, como em vez nenhuma do passado, a mãe está seriamente apaixonada.

Teresa: O que sabes tu de paixões, garota? Que eu saiba, nunca te apaixonaste na vida. Só estudos e desporto…

Clara: A mãe não tem que me explicar nada. Eu compreendo que tenha um namorado. E fico contente por estar apaixonada. No mais, não quero saber quem é. Não é preciso. A menos que a mãe esteja tentada a fazer o inédito: assumir uma relação.

Teresa: Muito bem, é verdade. Estou apaixonada. Mas não me passa pela cabeça assumir nada. Por isso não vale a pena contar-te seja o que for.

Clara: Tenho alguma curiosidade, confesso. Mas respeito-a.

Teresa: E tu, quando arranjas um namorado? Está mais do que na altura.

Clara: Ora, a altura certa é quando acontece, como sabe.

Teresa: E nada acontece?

Clara: Só posso dizer-lhe que sou alheia ao que sucede.

Teresa pensou que Clara lhe dizia que ainda estava à espera de se apaixonar.

 

AZUL - Cap XIII


Tita

18.09.16

Naquele dia Teresa decidiu ir buscar a filha à faculdade. Viu-a ao longe ao lado de uma colega. Saiam juntas. Num gesto automático, endireitou-se no banco do carro. Vislumbrou imediatamente um cabelo loiro apanhado. Ao longe distinguiam-se perfeitamente os gestos. O coração de Teresa acelerou. Agora que já estavam ali mesmo a um metro podia ver a cara dela. Os olhos azuis. As sardas cor de laranja. A rapariga sorriu-lhe timidamente. E baixou imediatamente a cabeça. O coração de Teresa batia perto da boca. Emudeceu quando tentou dizer alguma coisa. Sentiu uma vontade enorme de meter a filha dentro do carro e fugir dali com ela. A verdade é que também estava paralisada. Joana continuava a olhar para o chão. Clara sorria abertamente feliz.

Clara: Olá mãe. Esta é a minha amiga Joana. Somos da mesma turma.

Teresa estava gelada. Mostrou um sorriso pela metade. E olhou-a bem dentro dos olhos.

Teresa: Como vai, Joana?

Joana: Como está?

Teresa mantinha-se ao volante do carro sem fazer menção de sair. Por isso nem um beijo ou mesmo um aperto de mão. Joana vacilou com os olhos. Mas depois enfrentou. Teresa pensou em Clara. No que ela poderia estar já a pensar. Mas concluiu que os poucos segundos calados de observação recíproca com Joana não foram incomodativos para a filha, que nem sequer deu conta deles. Com efeito, Clara estava do lado de lá daquela ténue fronteira de energia que se instalara. Daí o convite sossegado:

Clara: Olha, a mãe vem buscar-me para almoçar. Se nos quisesses acompanhar…

Joana respondeu de forma rápida e convincente.

Joana: Obrigada, Clara. Mas fica para outra ocasião. Tenho um compromisso precisamente para o almoço.

Clara conhecia perfeitamente os compromissos de Joana naquele dia. Que, para o almoço, não existiam. Por esta razão, uma certa espécie de angústia tocou-lhe o peito. Depois esqueceu-se dela. Da angústia.

Teresa: É pena. Mas teremos certamente outras ocasiões para conversar.

Joana: Com certeza.

Já a sós com a filha, Teresa testou.

Teresa: Quem é esta tua amiga? É giríssima. Que idade tem?

Clara: A mesma que eu. Vinte. Acho que é mais velha uns meses.

Teresa: Parece ter mais. Que postura admiravelmente madura.

Clara: Talvez tenha lido livros a mais.

Teresa: Leu livros a mais? Que sabes tu da vida da pequena, Clara?

Clara: Sei que é muito simpática e que se farta de ler.

Teresa ia descomprimindo.

Teresa: Não te sintas afetada. Tu também lês muitos livros.

Clara: Não tantos como ela. Eu leio os livros que preciso e os que me interessam.

Teresa: Nem tudo se aprende nos livros. Tu sabes.

Clara: Mas talvez se entendam algumas coisas que de outra forma não podíamos saber.

Teresa percebeu uma amargura fina na voz da filha.

Teresa: Eu sei. Sempre me esforcei. Esforcei-me muito. Tu sabes.

Clara: Sei, mãe. Não se preocupe. E por favor pare de dizer “tu sabes”.

Teresa riu-se. Depois ficou séria.

Teresa: Eu cometi erros.

Insistia. Nunca ficava inteiramente descansada quando tinha de falar sobre o assunto. A ideia da culpa de ter estado muitas vezes ausente enquanto a filha crescia intranquilizava-a. Gostaria de ter feito melhor.

Clara: Talvez. Embora eu não tenha visto nenhum muito grave.

Ficaram caladas por um instante. Depois Clara retomou.

Clara: De qualquer modo, eu também amadureci um bocado sem si. A mãe sabe.

Riu-se porque disse “a mãe sabe”.

Clara: Na sua forçada ausência aprendi a resolver muitos problemas da minha vida de criança, e depois de adolescente, sozinha.

Teresa: Eu sei. Mas não achas que tive mérito quando fui capaz de te fazer compreender desde muito cedo porque não podia estar mais tempo contigo?

Clara: Como eu tive mérito em perceber, apesar de ser tão pequenina.

Teresa: Os louros são todos teus, então?

Clara: Nem pense. Hoje vejo como foi importante perceber na altura porque não estava comigo. Foi por isso que não tive medo. Nunca me senti abandonada por si.

Teresa relaxou os músculos e sorriu com benevolência.

Clara: Mas hoje em dia a mãe podia fazer melhor.

Teresa: Clara, tu já és uma mulher.

Clara: Talvez mas continuo a precisar de si. De outra forma, é claro. Mas continuo a precisar da sua companhia. E a mãe está sempre metida naquele ninho.

Teresa riu-se.

Teresa: Que ninho, o escritório?

Clara: Não estou a brincar, mãe. Mas deixe lá isso. O que importa é que podíamos ser as melhores amigas.

Teresa: Ai sim? Pois deixa-me lembrar que as mães e as filhas não devem ser as melhores amigas. Deve existir amizade mas ser mãe é ser mãe, ser filha é ser filha e ser amiga é ser amiga. O estado simples de amigo implica aceitar a contingência. A possibilidade do fim. Ser mãe implica uma relação para o resto da vida com o seu filho. Mesmo nos casos extremos em que existem rompimentos. Tu não deves desejar ser a minha melhor amiga. Eu tenho um papel. Uma função fundamental. Não se podem misturar as coisas.

Clara: E por isso a mãe tem de estar num patamar superior a mim.

Teresa: Pois. Que remédio.

Clara: E quem toma conta de si, mãe?

Clara tinha noção da falta de inocência da sua observação.

Teresa: Ora, menina. Eu sou uma mulher feita. Já não preciso que tomem conta de mim.

Como a filha previra, Teresa ficou realmente incomodada.

Clara: É o trabalhinho, mãe. Não pense que me ilude.

Na verdade, era só aqui que Clara queria chegar. Por isso não adiantou mais nada. Sorriu à mãe com ternura. Teresa suspirou devagar. No entanto, a angústia do encontro com Joana não desparecera. Lembrava também Madalena. E o que acontecera. O que é que Clara estava a fazer com a namorada de Madalena?

Teresa: Bom, mas então, voltando à tua amiga Joana, penso que não foste justa com ela. Parece madura mas não será porque lê livros a mais.

Clara foi seca.

Clara: Talvez não.

Teresa: Porque te pões assim, filha? Tenho a certeza que gostas dela.

Clara: Gosto, mãe. Mas porque insiste tanto em falar da Joana?

Teresa: Clara, eu “não insisto tanto”.

Clara: Ela tem os olhos da mãe.

Teresa viu que foi um impulso. Uma tirada inconsciente sem objetivo muito bem definido. No entanto, perturbou-se.

Teresa: Da mãe… Que mãe?

Clara: Os seus olhos, mãe. Os seus. Ela tem uns olhos que lembram os seus. Reparou que é praticamente o mesmo azul?

Teresa assustou-se. Não compreendia o que a filha sentia para estar a dizer aquelas coisas.

Teresa: Ora, Clara. Deixa-te de disparates. O que queres dizer? Olhos azuis são olhos azuis. Mudam sempre de cor conforme a luz. Nem sempre estão azuis. E raramente são iguais.

Clara: Mãe eu estou de acordo consigo. A Joana não é uma pessoa vulgar.

Teresa: Enfim, uma menina simpática. Queres mais alguma coisa? Posso pedir a conta?

MÃE EU JÁ VENHO


Tita

19.06.12

 

 

 

Morreu o Miguel Portas, o Bernardo Sassetti, o Quim. E morreu a minha mãe. Por esta ordem cronológica. Se não fosse a cronologia diria apenas: morreu a minha mãe. Se não fosse o cancro diria apenas: morreu o Bernardo Sassetti - os demais estariam vivos. E eu não estava assim.

 

Mas falo de todos por causa da morte que têm em comum e a proximidade do acontecimento entre todos. Na verdade, falo de todos para não me focar na pessoa que me importa. A presença que me desapareceu. Porque só me faz sentido falar dela. Ou ficar em silêncio a falar dela. Mesmo assim, temo as palavras que uso. Além de que não tenho muitas palavras para usar.

 

Talvez isto não seja boa ideia. A minha mãe era a minha mãe. Figura não pública cuja morte só interessa a quem a sente e a quem pouco sente mas também foi ao velório e ao funeral. Não sei se é correto escrever este texto. Também não importa, fica entre o escrito e o por escrever. É melhor assim. O Quim também era um desconhecido. Era pai. Morreu sozinho em casa. Tinha bom coração e uns olhos azuis muito bonitos. Tenho muita pena.

 

Não vou dizer muitas coisas. Não posso. Apenas sublinhava as seguintes palavras: solidão e indiferença.

 

Neste último mês (foi quando se soube da doença) habituei-me a correr pelo dia para chegar ao hospital sempre e cada vez mais cedo para sair sempre e cada vez mais tarde. Todos os dias aquém e além da hora da visita - da uma às sete. Eu e o meu irmão das onze às nove. Depois o meu pai - que só soube quando não foi possivel a ninguém esconder mais. Sei que se eu não podia estar o dia todo, corria, acelerava, angustiava. Quando chegava sentia-me feliz. A solidão própria de quem está num processo de luta física contra a morte e está a perder passava-lhe um bocadinho. Creio que então era substituída pela dor de quem sente que está a abandonar os que ama e não pode. Num dia desses de corrida aconteceu que a Sara Tavares cantou "eu sei". E eu chorei muito e compreendi o que a minha mãe queria dizer.

 

No dia 2 de junho estava morta de manhã. Cheguei para a visita. O cancro chegou, instalou-se e varreu-a num ápice. Quando foi a hora de sair junto da sua cama no hospital disse-lhe o que lhe dizia todos os dias e era verdade: “mãe eu já venho”.

 

 

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