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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

PERDÃO FEITO À PRESSA


Tita

10.12.20

 

Pedras Fotografias de Banco de Imagens, Imagens Livres de Direitos Autorais  Pedras | Depositphotos®

 

Sobre o ressentimento, creio que a dor que faz ressentir não tem de ser propositadamente provocada. Pese embora seja claro que a intenção também conta um bocado nestas contas. Seja como for, as coisas não estão tanto nos atos praticados pelo agressor, mas situam-se mais nos planos da sensibilidade e da história de cada um que é ofendido.

Como sabemos, não é qualquer dor infligida, ainda que séria, que provoca ressentimento. No âmbito da normalidade das coisas (portanto, fora dos planos de vida das pessoas neuróticas, hipersensíveis e outras), é preciso tocar em certas áreas, eu diria, mais estruturais das emoções para termos quem nos ressinta.

É evidente que o verdadeiro ressentimento só nasce, cresce e amadurece nas relações mais profundas entre as pessoas. Ou seja, nas relações de amor romântico, não romântico (amizade) ou amor de família, onde as pessoas são mais capazes de magoar e suscetíveis de serem magoadas, dado que todos, de uma maneira ou de outra, dão o flanco.

O ressentimento não é mais do que a dor calcificada pelo perdão feito à pressa em nome da preservação do amor. Resta saber quantas pedras destas suporta a alma de cada um ou quando é que o amor acaba.

 

AZUL - Cap LXXI


Tita

23.10.16

Joana: O que significa para si estar encantada?

Madalena: Para mim, é estar seduzida com alegria.

Clara: Pelo físico, neste caso?

Madalena: Sim.

Clara: E chegam-lhe relações estritamente físicas?

Madalena: Sim. Chegam-me. A si não, não é? É natural na sua idade.

Clara: Sim. Na minha idade as pessoas são sempre menos cínicas.

Madalena: É verdade. Aliás, a idade também foi uma das razões porque me envolvi com a Joana. Com ela vivi a pequena ilusão de regressar à juventude. Não que eu não me sinta e não seja uma mulher jovem. Acontece é que voltei um pouco aos meus vinte anos. Uma fase da minha vida em que as minhas emoções estavam bem arrumadas e eram puras.

Clara: Estou a ver. Mas não esteja sempre a puxar o assunto para o lado da minha mãe. Não é sobre ela que estamos a falar agora.

Madalena: Eu, quando falo de mim, acabo sempre por chegar à sua mãe.

Teresa: E tiveste, durante estes últimos vinte anos, muitos regressos ao passado assim do mesmo género?

Madalena: Não. A Joana foi o meu único caso com uma pessoa mais nova.

Joana: E como se sente uma mulher quando usa sexualmente outra? Foi disso que se tratou, afinal. Não foi?

Madalena: Que disparate! Claro que não. Entre nós não existia uma paixão devoradora. Mas havia atração de parte a parte. Foi uma relação curta. Mas, ficámos boas amigas. E isso é que é importante.

Joana: É verdade.

Clara: Uma paixão devoradora como a que sente pela minha mãe, Madalena?

Madalena: Clara, desculpe. Mas está a interrogar-me. Não sei se me sinto muito confortável com o tom que está a usar.

Clara: Não tem que responder, se não quiser.

Madalena: Não. Eu respondo. Já lhe disse. Respondo porque quero. Sabe, eu também acho importante que fique esclarecida sobre o que se passa entre mim e sua mãe.

Clara: Noto alguma animosidade em si?

Madalena ficou visivelmente irritada. Olhou para Teresa.

Madalena: Agora que fez essa pergunta, sou obrigada a responder-lhe que sim.

Teresa: Filha, estás a ser rude na forma como colocas as questões. E de facto, isto aqui não é um interrogatório. Além do mais, não tens autorização para ser descarada.

Clara: Desculpem. Eu só quero que esta conversa corra bem. Para o bem de todas nós. Mas cada vez que me ocorre uma questão…

Madalena: Fica enervada. Deixe lá. Com a maturidade virá a calma.

Joana: Madalena!

Clara: Deixe lá. Com a maturidade há-de chegar o bom senso.

Teresa: Isto não está a correr nada bem. E, portanto…

Madalena: Portanto, nada. Há que continuar. E pode ser a discutir. Não me incomoda e até prefiro

Clara: Pode ser a discutir sim. Porque, tenho que lhe dizer, a Madalena irrita-me profundamente.

Madalena: Ai sim? E porquê, se nem me conhece? Tem ciúmes da Joana?

Clara: De facto, fala como se tivesse muito pouca idade. E ainda se atreve a dizer que eu não sou suficientemente madura. E não serei. Mas fique sabendo que eu nunca tive ciúmes da Joana. Não depois de estar apaixonada por ela. Quando compreendi que gostava da Joana, já vocês tinham terminado. Terminado por causa do seu grande amor da vida que era precisamente a minha mãe. Ora, que grande ironia.

Joana: Acho que é melhor termos calma.

Teresa: Deixe, Joana. Elas que se entendam.

Madalena: Ora, Teresa. Deixa de ser paternalista. Entendemo-nos se for caso disso. Senão for, não nos entenderemos mesmo.

Clara: Pois é isso mesmo. Sabe o que eu acho? Acho que a Madalena está ressentida comigo. Porque eu simbolizo o seu abandono de há vinte anos atrás. A minha mãe deixou-a e não voltou mais para si porque eu nasci.

Madalena: A menina está a fazer aqui psicologia de almanaque.

Teresa: Desculpa, Madalena mas eu acho que não está. De facto, a Clara é o carpo que nasceu na sequência da nossa separação. Por isso, e como ela diz, simboliza a nossa rotura.

Clara: Carpo, mãe?

Teresa: Fruto, filha.

Madalena: Sim. Simboliza. Mas o meu ressentimento vai todo para ti.

Teresa: Pensei que me tinhas perdoado e que já não havia ressentimento. Tivemos longas conversas sobre isso.

Joana: Eu creio que a Madalena ainda se agarra a essas ideias apenas para se proteger.

Madalena: E eu creio que duas miúdas não podem dar-me lições. Era o que faltava. Nem tu, Teresa. Esta é a minha área neste amor. A da dor. Só eu é que sei como foi passar por esta dor. Mas, Clara, eu respondo-lhe à pergunta que fez lá atrás. Sim. Sinto uma paixão devoradora pela sua mãe. Precisa que eu lhe explique o que isso é?

AZUL - Cap VI


Tita

14.09.16

Teresa: Olá, Madalena. Como estás?

Madalena: Teresa?

Aquela voz. Era-lhe tão familiar. Aquele timbre tão suave. Por instantes Teresa saiu dali embalada pela voz que se projetava no ar, flutuando para a envolver como um abraço quente. Não a ouvia há vinte anos. Lembrou dolorosamente ao regressar.

Teresa: Madalena?

Com a mão sobre a porta, Madalena olhava para Teresa com calma. Muito consciente de que se encontrava na posição de quem nada tinha a dizer nem qualquer interesse que desejasse ver satisfeito. Lembrou-se igualmente do tempo que passou sem ver Teresa. E acentuou esta ideia no seu espírito. “Uma ausência de vinte anos é quase uma morte”. Uma ressurreição neste contexto não lhe fazia sentido. Mandou-a entrar. Já na sala, apontou para o sofá de veludo sangue de boi de três lugares. O velho conhecido sofá da casa dos pais de Madalena. Já era antigo há vinte anos atrás.

Madalena: Senta-te. Queres tomar alguma coisa?

Teresa ficou de pé no meio do tapete em frente ao sofá.

Teresa: Não, obrigada.

Deu dois passos em direção à janela. Mas podia ter virado para a porta da rua.

Teresa: Vim por um impulso... Achava que nem estavas.

Madalena: Estou a fazer o doutoramento. Como soubestes do meu regresso a Lisboa? Não cheguei há muito.

Teresa: Foi lá no escritório. Acabaste o curso em Coimbra e ficaste por lá a dar aulas, não foi?

Madalena: Sim.

Ficaram momentaneamente caladas. Depois Madalena ouviu-se inopinadamente perguntar:

Madalena: Como está o Diogo?

Teresa: O Diogo? O Diogo morreu.

Madalena: Morreu?

Teresa: Sim. Há dezoito anos. Estivemos casados dois anos apenas. Morreu com um cancro.

Madalena: Um cancro... Dois anos depois. Ninguém me disse nada... Os meus pais. Hum... Claro. É natural. Mas tu estavas grávida e...

Teresa: É uma rapariga. Chama-se Clara.

Madalena: Ah!

Teresa abriu a boca. Ia dizer alguma coisa. Acabou por desistir. Aproveitou o movimento para encher o peito de ar e fixou-se no rosto de Madalena como que à espera de uma indicação sobre o que fazer. Madalena nada fez. Teresa espantou, por fim, o silêncio:

Teresa: Casaste?

Madalena afastou rapidamente os olhos das unhas onde estavam. Olhou para Teresa e riu-se.

Madalena: Casei? Mas porquê? Imaginas que depois do Diogo se atravessar na minha vida eu mudaria tudo?

Teresa: Não é assim.

Madalena: O que não é assim?

Teresa: Eu é que atravessei o Diogo na tua vida.

Madalena: De qualquer forma, nunca lhe guardei ressentimento. De resto, ele não teve culpa de nada. Usaste-o. E para isso enganaste-o. É simples.

Teresa: Eu não uso as pessoas, Madalena.

Madalena: Só se mudaste depois disso. Na altura, não o fazias de facto na maior parte das vezes. Porque não precisavas. Mas quando precisaste, usaste. Toda a gente.

Teresa: Não é verdade.

Madalena: A verdade... Pois a verdade. Falas em verdade. Tu que mentiste tanto. Não percebes que mentiste? É espantoso. Se não percebes é porque não sabes que a verdade é. Independentemente do que desejamos que as coisas sejam. A verdade transcende o nosso ego e as nossas construções. A verdade são os factos. E de facto tu usaste-o. E a mim.

Teresa: Cada pessoa tem uma consciência. Eu agi de acordo com a minha. Não queria fazer mal a ninguém. Por vezes não podemos contar tudo às pessoas. É pior. Acredito.

Madalena estava de costas viradas. Não parecia já interessada em prosseguir por aquele caminho. Pelo menos para já. Mantinha a serenidade e não tinha pressa em ouvir explicações. Nem estava certa de as querer, aliás. Na verdade, apenas lhe interessava saber o que Teresa fora ali fazer. O que queria hoje. O passado estava mais que explicado. Era sentido. E morto.

Teresa: Tens alguém?

Teresa compreendeu demasiado tarde o que acabara de perguntar.

Teresa: Desculpa. Não queria...

Madalena: Não te preocupes. Tenho uma pessoa.

Teresa: Claro. E os teus pais?

Madalena: Os meus pais mudaram-se para a casa de Bragança e deixaram-me esta. E tu?

Teresa: Eu? Eu não tenho ninguém. Desde que o Diogo morreu que não tenho nenhuma relação séria com ninguém. Enfim, só uns namorados. Agora não tenho ninguém.

Madalena sorriu suavemente.

Madalena: Eu só queria saber onde moras.

Teresa levantou-lhe os olhos.

Teresa: Não brinques. Não acredito.

Madalena: Como queiras.

Teresa: Não voltei a apaixonar-me.

Madalena: Mas tu não estiveste apaixonada pelo Diogo.

Teresa: Eu gostava muito do Diogo.

Madalena: Toda a gente gostava muito do Diogo. Mas e a vossa filha, com quem se parece ela? Contigo ou com o pai?

Teresa: Se não te importas, preferia não falar sobre a minha filha.

Madalena: E porquê?

Teresa: Não importa.

Madalena: Como queiras.

Teresa: Olha Madalena, este assunto entre nós afinal nunca me deixou em paz. Depois de te saber de volta, algo muito extraordinário se passou. Foi como se tivesse acordado de uma espécie de sonambulismo. De repente parece que o tempo não passou.

Madalena sorriu.

Madalena: O tempo não passou e nada aconteceu.

Sustentava o sorriso largo na face morena, que avançou na direção de Teresa. O seu ritmo interno parou provisoriamente. Uma pausa para dar início a uma nova toada. Talvez mais rápida.

Madalena: Não acredito em ti, Teresa. De contrário, terias aparecido muito antes. Mas ainda que não estejas a mentir ou a imaginar, a verdade é que hoje, ao fim de vinte anos, já não posso fazer nada por ti.

Parou e lançou de novo:

Madalena: Talvez agora precisasses de um amigo. O problema é que tu não tens amigos. Nunca tiveste. E eu não posso ser tua amiga.

Teresa: De facto não mudámos muito. Tu conheces-me e afinal ainda te lembras bem de mim. Não te vou dizer que não. Há muitas pessoas que gostam de mim. No entanto, sabes bem, detesto partilhar a minha intimidade. Além disso, nunca fui pessoa para me andar a lamentar. Não tenho portanto nenhum amigo no sentido em que estás a falar.

Madalena: E ainda menos foste pessoa de ouvir lamentos.

Teresa: Bem sabes que nunca tive paciência para certos sentimentalismos. A maioria das pessoas é dada ao exagero. As mulheres adoram um drama ou uma bela comédia. Não importa. Desde que tenham um pretexto para verter uma lágrima. Enfim, digo pretexto para não falar em interesse. Já os homens parece que não percebem bem certas coisas. É como se algo dentro deles não estivesse bem afinado. Seja como for, estou-me a dispersar. Nada disto interessa para aqui.

Madalena: Ora o choro, Teresa. Que mal te faz o choro.

Teresa: Faz-me mal a falsidade ou pelo menos o exagero.

Madalena: Não podes deixar de saber que nem todas as lágrimas são falsas.

Fez uma pausa que Teresa não desejou aproveitar. Prosseguiu, então.

Madalena: E as outras mentiras, também as detestas?

Teresa: É verdade que nem todas as lágrimas mentem. Mas mesmo as verdadeiras são essencialmente inúteis e desmotivadoras.

Madalena: Claro que não te interessa ver que a questão não se coloca nesses termos. O que importa é se é ou não é sentido. No entanto, tu ainda valorizas menos os sentimentos do que as lágrimas. Deve ser porque as lágrimas ainda se veem.

Teresa: As pessoas têm de ter a atitude certa para enfrentar os problemas. Chorar não adianta e, creio eu, enfraquece o espírito.

Madalena: Sabes, hoje em dia na minha vida já não me interessava discutir este assunto contigo. Jamais te procuraria. Afinal o que queres?

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