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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

Alexandre O'Neill


Tita

19.02.07

 
O Alexandre O'Neill escrevia. Um gosto. Uma sinceridade. Uma franqueza. Escrevia com a inteligência mais sensível que a simplicidade pode ter. Alexandre é português. Um português vivo-morto.

 

É muito importante O' Neill estar vivo. Todos temos de o ler. E ouvir. Como eu o ouvi na voz da Amália. Um dia, de surpresa. Deixou-me um nó dorido na garganta. Onde anda o Portugal destes dois?



Vinícius nunca mais! 

 

 

 

 

 

  

 

 

  

 

 

"Só mesmo o Irineu me punha a escrever sobre o Vinícius . O melhor é ler o Vinícius , não escrever sobre ele. Parece que escrever sobre é uma necessidade hoje em dia tão grande que até se fazem jornais quase só para isso. E então se há comemoração de aniversário... Eu gosto muito de ler certos poetas, mas bem pouco do que se escreve a propósito da obra ou da vida deles. Há quem pense que a leitura do Pessoa, por exemplo, está a ser bastante prejudicada pelo excesso de explicadores da obra dele. É provável. O que acontece comigo e com esta enorme falta de vontade de escrever sobre a obra de seja quem for é que não acredito que uma obra ganhe muito em ser explicada. Depois, eu não sou explicador. Só tenho palpites. Sou como o «tio» João: tenho palpites de impressionista, como diz dele o poeta com nome de navio.

E ainda acontece outra coisa comigo: durante muito tempo li mais as explicações do que as coisas que, em princípios, as explicações explicam, e agora, invertida a tendência, estou a ver se aproveito o tempo que me resta de vida para ler finalmente as coisas. Tenho tido surpresas (mais boas que más) que nem lhes digo! Uma das mais importantes foi a leitura das Mémoires d'Outre-Tombe . Recomendo, e deitem pela borda fora tudo o que lhes disseram sobre Chateaubriand , romantismo, etc. Entreguem-se ao prazer da leitura. Façam o mesmo com um Céline e, em duas semanas, vão atirar às malvas uma boa dúzia de autores considerados geniais. É que já lá estava tudo e há muito mais tempo. É uma chatice mas é assim... Mas como gosto muito de Irineu e do amor verdadeiramente patológico que ele nutre pela coisa literária, vou tentar falar do Vinícius , que era como eu, com a diferença de ter mais dinheiro para comprar whisky, o que, verdade verdadinha, também não faz uma diferença por aí além.

A poesia do Vinícius diverte-me tanto que até fiz uma antologia dela. Nas primeiras edições, a antologia chamava-se O poeta apresenta o poeta, que era o meu modo de dizer que um poeta não precisa de ser explicado. Mas como éramos (em princípio...) dois poetas em presença, as pessoas julgavam que era o O Neill a explicar o Vinícius.

Depois do 25 de Abril, a antologia passou a chamar-se, com maior sentido das oportunidades, O operário em construção, que é o título dum dos poemas. Já publicaram 7 edições do Operário, mas o texto, a cartinha que escrevi para o Vinícius só me foi pago (1 conto de réis) uma vez. Dizem que é assim, que não há nada a fazer, que só o Dr. Branquinho da Fonseca é que recebia mais grana cada vez que saía uma reedição duma tradução das dele.

Ora a poesia do Vinícius diverte-me. Ele tem um notável irrespeito por tudo e todos. Ele dá a impressão dum homem que teve respeito só uma vez, só até aprender que nada nem ninguém merece essa hipocrisia a que as pessoas chamam de respeito, essa espécie de esmórfia (passe o italianismo...) de reflexão grave que os mundanos da literatura e arredores põem na bandeira da cara. Aí a gente encontrava-se e ríamos muito. Depois, na poesia do Vinícius há um lado deliberadamente cabotino que também me diverte imenso. Aquela coisa do amor a ser eterno enquanto durar só mesmo dum malandro de génio, que era o que era o Vinícius . Dava a impressão que ele fazia poesia para engatar, para ser imediatamente útil, o que é uma excelente maneira de fazer poesias. Os especialistas não gostam, dizem que se sacrifica muito ao anedótico,

mas haverá coisa mais excitante do que conseguir engatar uma mulher com um soneto? Só mesmo os dois fingirem que foi por causa do soneto...

Outra, coisa que também me diverte é o Vinícius estar-se nas tintas para aquilo a que se poderia chamar o progresso técnico da sua poesia. Imagino que, no fim da vida, ele conseguiu aquilo a que eu, mero aprendiz, aspiro: ser detestado por todos os sectores, ser considerado um ordinarão pela cabeleireira da minha mulher e um idiota reaccionário pelo médico do meu filho e saber, não obstante tudo isso, que há uma mulher de meia-idade que extrai um prazer onanístico da leitura às escondidas dos meus versos... O Vinícius deve ser considerado pelos explicadores um caso arrumado como poeta. É bem feito! Quem lhe mandou fazer tanto soneto de engate e beber tanto whisky em público? O Vinícius era um farsante! Tenho aqui em casa um livro dele com uma dedicatória em que diz que está muito triste por escrever aquela dedicatória na véspera da partida da Christina para o Brasil... Ou então não era farsante nenhum e tinha uma sinceridade para cada momento.

Meu caro Irineu , eu disse-lhe (já que V. mo proibiu ...) que não ia falar das mulheres do Vinícius , mas como posso falar da poesia dele sem falar, pelo menos de raspão, da Christina , das que vieram depois, etc.?

Irineu : com este tipo de máquina já estou nas 3 páginas. Nem Você, caro Amigo, nem o Vinícius , caríssimo Amigo, merecem mais.

Vinícius nunca mais! "

   

 

 

Vinicius de Moraes

 


 

"A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete . Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre".

 

Amadeo de Souza Cardoso não tem olhos


Tita

19.02.07

Fui à Gulbenkian ver a exposição do Amadeo de Souza Cardoso. Gostei muito de muita coisa, mas não saberia escrever sobre isso. Tenho pena.
Fica, então, apenas a minha visão de um só quadro: "O luto, a cabeça e a boquilha"
 
Amadeo de Souza Cardoso não tem olhos. Pelo menos, não tem olhos que se lhe vejam. Ou, de outro modo, não se lhe vêem os olhos. Este é, talvez, o traço mais notório e o elo comum a todas as criações do artista sobre rostos de gente, em dada fase da sua obra.
 
As suas cabeças humanas nada mostram a partir de dentro das enormes órbitas escuras que ostentam. É mesmo assim o quadro a que chamou: “a cabeça, o luto e a boquilha”. Uma plasticidade sinistra que chega onde quer: ao arrepiante, ao revoltante e ao incomodativo. Uma obra emergente de um mesclado de tons escuros sobre o sinistro verde cipreste, onde o vermelho do sangue se impõe -  numa subtileza que o ostenta. E os olhos que, sem dúvida, existem estão quietos e invisíveis, envoltos naquela escuridão assustadoramente intrigante. Fica a impressão, que é quase uma certeza: aqueles olhos não vêem como deviam ver. Não vêem claramente. Como é, por outro lado, certo, também, que tais olhos não se querem deixar ver. 
 
A verdade é que o rosto do homem que tem os olhos escondidos não precisa de olhos para que o vejam. É fácil observar que o homem que está de luto veste um fato muito elegante e fuma por uma boquilha. Está de luto. O luto veio da morte e, no entanto, nota-se bem que é precisamente a morte que ele não quer ver. Veste-se com requinte e fuma com boquilha para parecer mesmo requintado, frívolo, superior, divorciado das menoridades, do que é realmente humano. Ele fuma de boquilha com desprezo pela vida e pela morte. Como se fosse outro e estivesse num patamar mais acima. Como se acreditasse na eternidade que é própria dos deuses. Uma classe material-espiritual de seres muito superiores à qual ele, por força de alguns dos seus marcadíssimos traços pessoais, acredita pertencer.
 
Note-se que ele não vê a eternidade como vida. A eternidade não é vida nem morte. É outra coisa. Outro estado. É algo que se move num plano de beleza e de prazer permanentes. É isto que os seus olhos envoltos de escuridão vêm. Por isto, quem vê o rosto, diz que tais olhos não vêm bem.
 
O sangue na boca é uma prova ou, pelo menos, um sinal do glaucoma. É verdade, aqueles olhos vêm, mas estão a cegar. Estão a ficar cegos, num processo gradual de degradação fisiológica provocada pelos equívocos, pais dos erros sucessivos. De ilusão em ilusão a doença agrava-se e os olhos estão quase cegos. Não vêm, portanto, o sangue que escorre da sua própria boca. Da boca dos olhos. Da boca da alma. A alma está a apagar-se na mesma proporção em que os olhos cegam. A morte está mesmo ali. Os nervos, esses, nunca souberam sentir. O sangue escorre, provando a parte de humanidade menor daquele ser. O descontentamento de todos os homens que queriam ser como deuses. O inconformismo desfocado da maior parte dos seres humanos.
 
O sangue é o inequívoco sinal da destruição das suas ilusões sobre a hipótese de ser divino. Ele é de carne e osso e vale bem menos do que o fato elegante e da boquilha (que lhe dá ainda mais requinte). Ele vendeu a alma ao fato e à boquilha. Agora a sua vida está gasta pelo uso, enquanto o fato e a boquilha brilham de luxo e lustro. É que a vida não se pode trocar por outra quando está gasta pelo uso. A vida não se compra com dinheiro, como os belos fatos e as irradiantes boquilhas.
 
Remira-se o quadro, a obra, uma vez mais. A dúvida assalta-nos: Poderá ser que o homem de luto está a fazer o luto pela sua própria morte? Será que foi ele quem morreu? Pode ser que a cabeça pertença ao morto. Que os seus olhos estejam mesmo definitivamente apagados. Que o fato brilhe em função da extrema qualidade do tecido e da preciosidade do corte. E que a requintada boquilha já esteja apagada – o que pouco importa pois a sua função não é essa.
 
A cabeça pertence a um ser ridículo. Neste ponto, dúvida não há.
 

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