ELOGIO
Tita
20.03.07
Existe uma ligação forte entre o elogio e a inveja. Mas não só. Entre o medo e o elogio também. Neste último caso, nos dois sentidos. Sucede que, assim, já não é elogio. O elogio presenteado, tipo brinde publicitário "gama para empresas", quero dizer. Numa situação destas, se há elogio, não há elogio. Há a mentira utilitária a ver se pega e dá alívio. Palpita-me que também existe uma ligação sólida entre o elogio e a cobardia. On verá(apetece-me dizer este francês sintético musicado, linha Brel, se fosse ele a cantar).
Gosto de ser elogiada. Quem não gostar que atire a primeira pedra. Qualquer manualzinho de bolso sobre psicologia aplicada (ao quotidiano comezinho) ensina que assim é. Não vale a pena mentir. Existe também, como se sabe, uma ligação entre o elogio e a mentira.
Normalmente, ninguém me elogia. Durante muito tempo pensei que isso era normal. Acreditava, dada a normalidade do facto (entendida no seu sentido de habitualidade) que o elogio amolece o espírito. Insufla o ego. Desincentiva o esforço. Trabalho e alegria são incompatíveis. Prazer pela obra realizada é praticamente um pecado (tal como a luxúria é um dos "Sete pecados mortais"). Seja lá que obra for. Mesmo que seja encerar um chão muito bem. Pelo trabalho tem-se o salário. Pelo trabalho obtém-se uma nota curricular. Quando se obtém. Há professores que não acreditam no mérito de ninguém, para além do seu próprio. Nem a admiração revelada se adquire pelo trabalho. Só pelo estatuto. Ter concluído uma licenciatura em Direito, só contribuiu para cimentar, ainda mais (como se fosse preciso), esta minha noção para a vida.
Há quem admire muito a Maior Árvore de Natal da Europa, que este ano esteve na Praça do Comércio. Logo que se soube, e foi logo, que era a maior Árvore de Natal da Europa, toda a gente a elogiou. É muito fácil elogiar objectos. Sobretudo, se forem os maiores da Europa. Particularmente, porque a margem de erro é pequena. Também porque não ameaça ninguém. Não é uma pessoa próxima ou em risco de o ser.
Geograficamente, nós, Portugal, não somos o país mais pequeno da Europa. Porém, não sei porquê, acreditamos firmemente que sim. Somos o país mais pequeno da Europa. Como justificar este absurdo? Com a doença. Nós estamos doentes do sistema métrico do nosso patriotismo.
Sinceramente, não me considero exemplo para nada ou para ninguém, para além de um ou outro bom exemplo que justamente possa dar. Um dia entrei em contacto mais estreito com a sociedade civil brasileira (aquele conjunto de fenómenos organizados que ficam entre o Estado e a família), bem como com a sociedade brasileira não organizada - com as pessoas. Foi aí que fui elogiada pela primeira vez com toda amplitude e verdade.
No princípio, estranhei. Achei que não era verdade. Que os brasileiros são assim: Gente de sorriso fácil. De gingado fácil. Em geral, de pouco saber e cultura. Gente de mentira fácil. Gente que diz e faz tudo andando pela superfície da vida, a ver se é amada ou se safa na vida. Como os brasileiros são mal educados, carentes, egocêntricos e oportunistas, pensava. Mal. Muito mal na minha falta de educação básica. Se digo aqui e agora tudo isto que pensava é porque já me arrependi e tenho vergonha hás muito tempo.
Os brasileiros são tanto assim como o são os portugueses, os ingleses, os franceses, os americanos, os indianos, os alemães ou os africanos. Quem pensar o contrário um dia arrepender-se-á. Não se pode confundir um universo cultural particular a cada sociedade com o carácter de cada pessoa. Podemos gostar, ou não gostar, do modo de viver global de um determinado povo. Podemos gostar, ou não, conforme a nossa própria sensibilidade e aptidão para poder saber mais dos outros. O que não se pode é andar por aqui e por aí a generalizar, caracterizando e reduzindo ilogicamente cada ser humano a um padrão que, ainda para mais, nem sequer é apurado. Temos este hábito de dizer coisas como, por exemplo: os brasileiros são malandros, os americanos são muito espertos, os japoneses são umas formigas trabalhadoras, os africanos são estúpidos, os alemães são frios, o café está na mesa, o hambúrguer é para o miúdo , o meu carro é um Honda, esse anel de diamantes é um assombro, estas salsichas fazem um cachorro óptimo.
Tenho um amigo alemão. De quem gosto muito. Senão não era meu amigo. Era outra coisa. Disse-me um dia, em modo de alta voz, que acreditava sinceramente que as mulheres portuguesas tinham bigode e andavam todas de bata. Isto enquanto estava na Alemanha. O que, como é normal, aconteceu durante a sua vida toda, até se mudar para Portugal. Protestei com uma interjeição . Não estava preparada para aquilo. Não fui imediatamente capaz de falar. Ele explicou-se. Disse-me que, na Alemanha, não conhecia portuguesas que não fossem assim. Havia muitas e todas usavam bata e tinham bigode. Mais, quando, nos noticiários lhe apareciam notícias referentes a Portugal, lá vinham as senhoras hirsutas embatadas a falar. Fiquei doente. Porém, claro que o Frank é casado com uma portuguesa. Na minha casa, nunca viu uma bata pendurada em lado nenhum. No mais, ele é engenheiro da Siemens, a empresa que prefere Portugal.
Foi graças aos elogios soltos, sentidos, permanentes, sem esperarem nada em troca, que eu aprendi a escrever. Escrevi em muitos sítios para brasileiro ler. E eles, sinceramente gostavam. Porque o diziam e, em troca, só me pediam para não parar de escrever. Um deles construiu-me um blog para ficções. Queria que eu escrevesse mais. Eu escrevi. Com uma alegria. Com um impulso. Com um prazer. De cada dia, cada vez escrevia melhor. Histórias melhores. De cada dia, cada vez produzia mais. O meu blog para o Brasil enchia-se de comentários. Vinham apenas elogiar. Nada mais.
Espero que resulte evidente que não quero aqui elogios! Sobretudo porque sei que não os receberei. Mas, ainda que assim não fosse, viriam de portugueses. E, em Portugal não se elogia ninguém. Eu sentir-me-ia muito incomodada por um solto e sorridente elogio lusitano. Nós não temos capacidade (nós, menos eu). Ser capaz de elogiar, não tem tanto a ver com o que se sabe ou conhece das coisas, mas com o modo de sentir das pessoas. Porque vivemos tão mesquinhos e desconfiados. É uma pena que um país ande há tanto tempo a deixar-se dominar pela insegurança, pelo medo, pela dúvida e pela inveja.