MOSCAS
Tita
23.10.07
Entrou-me uma mosca varejeira em casa. É enorme para mosca. Á vista desarmada, é mais preta do que as moscas (embora a maior parte das moscas nem sequer sejam pretas). Faz um ZZZZZZZZZZZZZ muito mais alto. Não gosto. Faz-me medo. Tenho medo que me morda. Embora acredite que não o faça. Mas não a deixo tocar-me. Se o conseguir, alguma coisa desagradável fará.
Entrou-me uma mosca varejeira em casa e eu tentei expulsá-la com um pano qualquer. A janela estava aberta. Sacudi o pano de modo a dirigi-la para a janela. Para fora da minha casa. Estive sempre atenta aos movimentos esvoaçantes do bicho. Fundamentalmente, não queria que ela me tocasse. Não.
Observei-a. Não me queria tocar. Se pensa, nunca pensou em tocar-me com essa intenção que só as pessoas têm quando estão intencionadas. A mosca só queria fugir. Voltar para onde vinha, talvez. Também ela queria sair pela janela e ir à sua vida. Apenas não dava com a saída. Era só. Compreendi isto, mas como não lhe podia explicar e continuava com medo dela, continuei a lançar-lhe o pano para cima. Finalmente, lá atinou com a saída e foi-se embora. Nunca mais soube nada dela.
Deve ser complicado estar num labirinto. Um dia meti-me dentro dum labirinto num parque de diversões. Foi na antiga Feira Popular de Lisboa. Paguei para isso. Naturalmente, também paguei por isso. Se era um labirinto e na Feira Popular, tinha que ser um labirinto a sério. Uma coisa difícil, cheia de entraves no caminho, de indicações erradas, de apontadores falsos. Não comecei a gritar. Não faço essas coisas. Não comecei a gritar alto. Só calada. Por vezes, faço estas coisas. Porém, gritei pouco, dado que não entrei em pânico. Nunca entro em pânico quando tenho razões para isso. Quando é a sério, nunca. E aquilo, pessoalmente, não era só uma brincadeira. É que não suporto estar presa no caminhar. Impedida no ir.
As moscas vivem a sua vida. Aparecem na casa das pessoas sem desejar nenhum contacto com elas. Vêm para se alimentar, para se aquecer, para procriar, para dar à luz ou por engano. Vêm apenas porque vêm e querem sair quando for caso disso. Não querem aborrecer ninguém. Estão apenas vivas e são.
A questão é que as moscas aborrecem. Tanto que os seres humanos há muito que inventaram coisas para as matar com competência. As moscas não querem, mas chateiam as pessoas. As pessoas, por seu lado, quando se sentem chateadas matam as moscas. Com efeito, quando mais frágil é o chato, maior é a vontade de o aniquilar. A inversa também é verdadeira, naturalmente. Quanto maior é o chato, menor é a vontade de o matar (embora o desejo apenas se cale lá bem no fundo).
A amplitude da vontade é equivalente ao poder que se tem para consumar os actos que a satisfaçam. Por exemplo, os Rinocerontes atacam à parva. Vêm qualquer coisa a mexer ao longe e põem-se numa correria desenfreada em direcção ao alvo. As pessoas que estejam na mira dos rinocerontes não devem tentar outra coisa, senão fugir rapidamente. Porque, para aquelas bestas, o longe é muito perto. Correm como tudo. Não há tempo para sequer pensar em estratégias de defesa mais agressivas, como matar o rinoceronte. Portanto, só aniquilamos até um determinado ponto de força e de amplitude que nos surja em sentido contrário. Nos outros casos, fugimos. Não queremos saber porque razão as moscas andam perto de nós. Queremos matá-las porque nos aborrecem.
Também fazemos e acontecemos à distância, tipo cobardes. Falamos, opinamos. Posicionamo-nos a favor da guerra do Iraque e nem queremos saber do que propriamente falam os médicos da AMI. Os únicos humanos que falam com humanidade nestes casos. Certamente, nestes casos, e só nestes casos, pensamos no problema de matar moscas. São as únicas situações em que ponderamos sobre a inocência das moscas. Porém, concluímos pacificamente que é uma pena que morram moscas inocentes. Mas são moscas. Moscas da Ásia, no caso. Infecto-contagiosas, suspeitamos.
Na verdade, nada nos interessa na vida das moscas, para além de que não as queremos nas nossas vidas. Ora moscas somos nós. Ora moscas são os outros. Porquê não sei. O que sei é dos milhares de panos esvoaçantes, cortando o ar que vejo todos os dias. Cada um com o seu na mão. É estranho porque, afinal, somos moscas e pegamos em panos. Somos moscas sem corpo de mosca. Metamorfoses. Não, sínteses de elementos inconciliáveis. Somos mesmo esquisitos. Por vezes, muitas vezes, parece que os panos nos estão a acenar. Por vezes acenamos com os panos. Mas, no fundo, no fundo, é mentira. Não queremos os panos para acenar. A questão é que sendo moscas, mas não sendo moscas, não é fácil proceder a enxotamentos com panos da cozinha. Não sei porque insistimos nestes procedimentos.
Por muito que não o deseje ardentemente, cada ser humano é uma ilha. Há sítios por onde se pode penetrar. Há outros que não. As ilhas sabem que as pessoas só lá vão para andarem em cima dela, fazerem recolhas ou ver as vistas. Todas as ilhas têm sítios que ninguém conhece. Não é por acaso que são porções de terra rodeadas de mar por todos os lados. A solidariedade morreu no momento em que se separaram de outros pedaços de terra semelhantes. Ou a solidariedade nunca existiu porque nunca estiveram ligadas a quaisquer pedaços de terra desde que nasceram. Não tenho dúvidas que todas as ilhas se sentem sós. Mas preferem assim. Eu, enquanto ilha, resigno-me. Mas não gosto do modo como estas coisas são feitas.