UM HOMEM BOM
Tita
24.10.07
Conheço este homem porque me meti na casa dele por acaso. Metamorfoseada de mosca, Ia a voar e entrei por aquela janela daquela casa. Ele tinha várias casas. E também ficava em hotéis quando fazia férias. Muitas vezes estava em escritórios, lojas ou restaurantes. Inicialmente, eu metia-me dentro das malas ou dos sacos dele para ir também. Tinha curiosidade. Depois, já não queria ir a lado nenhum. Desejava voar para fora dali. Mas fecharam-me todas as janelas e meteram-me numa jaula de grilo com rede. Impotente continuei a vê-los, a ouvi-los e a pagar pelos pensamentos deles, pelo tempo a mais que não desejava.
Falo do pai de uma família. Que era o chefe. Que, mais do que chefe, era o líder. Que, muito mais do que o líder, era um Santo. Que, por isso, era a própria família reflectida em si. Um homem bom. Muito melhor do que todos os homens. Assim se acreditava por contágio.
Um dia o Santo agradeceu a Deus por não ter um filho deficiente mental. Tinha dois muito saudáveis. Agradeceu a Deus. Sentia-se impregnado de um piedade oleosa (porque não saia com o banho) por alguém que tinha um filho doente. Doente assim. Da cabeça. A criança nascera com trissomia 21. Um mongolóide, pois.
O Santo tinha uma pena imensa. E, para tanto, bastava-lhe observar o riso apatetado do menino. Como que trespassado na alma por aquele olhar do menino feito espada afiada, desviava os olhos daqueles olhos demasiado pequenos e estupidamente tortos.
Como um santo se afasta do demónio, o Santo virou as costas ao menino e ao pai. Cheio de pena. Cheio de pavor. Agradeceu e pediu sempre a protecção divina. Regressado a casa olhou para os filhos cheio de orgulho. Pleno de satisfação. Contente consigo. Com os frutos que podia dar. Feliz com o seu mérito.
Até que a adolescência de um filho do Santo lhe trouxe a esquizofrenia para dentro de casa. As portas fecharam-se. Foi o adolescente em dor que se trancou. O Santo queria entrar. Tirar o filho de lá. O filho não saia. Não respondia. Ouvia vozes. Falavam-lhe no centro da cabeça. Diziam-lhe coisas diferentes. Mostravam-lhe caminhos e outras vidas. Outras pessoas. O Santo falava. Insistia. Não acreditava. Acreditava, antes, em Deus, que não lhe podia fazer aquilo. Estava grato a Deus por o ter livrado de um filho doente mental. O Santo acreditava, como nenhum homem comum pode acreditar, que um filho é uma extensão de um pai. Uma continuidade física, psicológica e emocional. Portanto, um reflexo fidelissimo. O Santo via-se a si próprio fechado nas divisões das casas com as vozes a encherem-lhe a cabeça. A falarem-lhe de coisas que lhe tapavam os ouvidos e o enchiam de terror. A vida tomou-lhe outro aspecto. A dor acompanhou-o para sempre. Ao filho. Mas também ao pai. Porque era um santo.
O Santo lutou. Lutou contra a verdade. Arrastou o filho por todos os caminhos, batendo a todas as portas. No entanto, só entrou pela porta certa já no fim. Quando deixou de acreditar na bondade de Deus. E aceitou que tinha um doente mental dentro de casa.
Perdeu a fé. Afastou-se do filho para que não os confundissem. Quebrou a fé com Deus e cortou os laços com o filho. Fez estas duas coisas ao mesmo tempo. Daí em diante passou a viver como um Santo órfão de filho e de Pai. E, numa conversa intima com Deus, revelou-Lhe que ainda guardava uma ínfima esperança de o filho que tivera voltar. Se assim fosse, estava disposto conceder-Lhe, a Deus, de novo, a sua fé. Porque o Santo está convencido de que Deus não pode existir sem a fé dos homens e muito menos sem a fé dos santos, que é de mais elevada qualidade. Deus habita na alma dos santos, que o podem expulsar quando assim o acharem justo.
Tinha, então, obrigações perante aquele novo ser que chegara. O seu filho morrera. Vinha alguém em seu lugar. Uma cabala divina. Uma traição de Deus. Todos os dias chorava a perda do filho e no, entanto, era preciso cuidar para que um dia, quando não existisse houvesse quem tivesse santas obrigações para com o doido, ele não morresse de fome, de sede ou de frio. Isto é o dever de um Santo porque só um santo pode acarretar tamanha proeza de alma. Além de que todos exigem isto de um Santo e só a um santo. O Santo não pode desiludir ninguém quanto à sua santidade, sob pena de ser despromovido a homem e, consequentemente, desprezado.
Encheu-se de ambição e de espírito de sacrifício. Trabalhou até ser rico. Não esperava tanta riqueza material. Mas aceitou-a como uma recompensa concedida por si a si próprio, sem pensar que, talvez, Deus tenha dado a sorte, que não é sorte, mas vontade divina, ao filho que continuava ali. Em dor.
Mas, antes pelo contrário, o Santo descansou sobre o objectivo alcançado, usufruindo de tudo, e só de tudo, o que o dinheiro pode comprar. Por outro lado, cumprindo com o aludido dever de santidade, adquiriu para o débil mental, em nome do filho que teve um dia, um seguro de vida cujo propósito é assegurar-lhe um futuro livre de miséria.
E, de vez em quando, vai olhando para ele, para o filho que já não tem, para a carcaça viva do filho morto, com ressentimento. Mostra-lhe com o olhar o sentido do peso que é a tarefa que este lhe veio entregar, revelando-lhe como tudo é injusto.
Leva-o ao médico, dá-lhe os remédios, paga-lhe tudo o que o dinheiro pode pagar, dentro dos limites do que se exige a um Santo. Porque ainda existem coisas que o dinheiro pode pagar, mas implicam um pouco mais de outro tipo de esforço. Um tipo de esforço que não se exige nem a um santo. Portanto, nada mais lhe deve porque isto é tudo o que se pode dar ao demónio que entra pela casa de um homem bom. O Santo é tão santamente bom, que alimenta demónios dentro da sua própria casa. E, por fim, como tem uma fé inabalável em si próprio, acredita que o filho um dia ainda há-de voltar. Aguarda a boa nova pelo telejornal.