JOÃO
Tita
29.10.07
O que vou contar é verdade. O meu nome é João. Sei apenas que nasci. Sei, também, que aconteceu na maternidade Alfredo da Costa. A mim e à maior parte dos nascituros de Lisboa. Sou, inclusivamente, amigo de alguém que passou pelo mesmo, no mesmo dia, mas não à mesma hora. Ali na Alfredo da Costa. É verdade, somos amigos desde a escola preparatória. Conhecemo-nos e soubemos da coincidência. Ele gosta de mim. E também gosta de mim de um modo diferente do que eu gosto dele. Apenas porque se importa com isso do dia de nascimento. De termos nascido no mesmo dia. Por mim, não sei bem o que pensar sobre esta exacta questão. Não penso assim.
Não me lembro da maternidade Alfredo da Costa em relação a mim. Apenas tenho vagas memórias sobre as duas ou três vezes em que tenho consciência que lá estive. Uma delas foi para acompanhar a mãe de visita à "senhora lá de cima", que foi ter um bebé. Eventualmente, nas outras ocasiões fui lá ver a minha própria mãe, que também foi ter um bebé. Infelizmente, depois de mim, a mãe teve mais filhos.
Estou certo de que não gostei de ter mais irmãos. Como hoje não gostaria que um estranho me entrasse em casa sem autorização. Como um colega de trabalho me levasse o carro só para ver quanto dá em autoestrada. Como se, dos vinte cigarros que fumo por dia, que são meus, dez fossem para deitar fora sem qualquer motivo aparente. Não sei se esse desgosto foi imediato ou se surgiu quando o organismo como que me pediu mais nicotina. A que já lhe vinha faltando.
Dos hospitais da minha infância recordo o da Estefânia. A impressão que tenho é que foi neste que nasci. É o que a memória me indica, e está errado - basta olhar para o meu bilhete de identidade. Mas sei que fui atropelado por um carro. Levaram-me para lá porque era criança. Sei muito bem que estive lá deitado numa maca. Fui muito bem tratado. Com sorrisos e permissões. Com a excepção de não me poder levantar da maca. Mas também não queria.
O pai e a mãe estiveram sempre ao meu lado. É assim que me lembro. E pode não ter sido assim. Mas o que importa é o que eu lembro. Lembro, como se fosse agora, nos nervos dos meus dez dedos das minhas duas mãos o momento em que não lhes larguei os tecidos porque os mandaram para casa. Eu ia lá ficar pelo menos uma noite em observação. Recordo o pânico na força tenaz dos meus pequenos braços a tremer. Não sei exactamente porque razão não podia absolutamente ficar ali. Lembro-me que sem eles Não! Gritei, por isso, todo o choro que tinha para expressar. O meu medo causou o talvez receio na medida certa para eu sair. Deram-me alta nestes termos.
Recordo a caixa dos bolos de pastelaria. Não vi a bola de Berlim, mas é provável que lá estivesse no meio dos outros. Eram vários. E todos para mim. Foi a mãe quem foi comprar de propósito. Deu-mos como a restituir os dez cigarros que há muito me faltavam, e nunca deixei de sentir falta. Perguntei se podia fumá-los realmente. Sim. Eram todos para mim. É bom ser atropelado.
Muito mais tarde, contaram-me que fora um bebé de colo muito doente em certos períodos . Que fui para o hospital da Estefânia muito mal, muitas vezes, nos braços apertados de aflição da mãe. Em perigo de vida. Senti-me muito gratificado retroactivamente. Senti saudades dos braços apertados da mãe que não me lembro de jamais ter sentido. Se a memória se alimenta e cresce das emoções, talvez eu me lembre disso tudo e perceba porque continuo a sentir que nasci ali, no hospital da Estefânia.
Um dia, não sei de que parte importante da semana, o pai e a mãe entregaram-me aos cuidados de um jovem adulto muito simpático. Era dono de uma pequena oficina de fazer coisas que não eram carros. Penso que era o seu hobby. Tinha uma mesa grande de madeira, um torno, serrotes, pregos e outras coisas assim giras de brincar.
Este dia aconteceu muito antes de ter sido atropelado e muito depois de ter morrido nos braços apertados da mãe ao colo dela. Como se deveria morrer. Talvez eu gostasse dele e da oficina dele. Com toda a certeza, os meus pais gostavam dele. Eu já tinha brincado naquela oficina. Sempre com poucas liberdades. Sempre com alguém por perto e com uma ou outra criança por companhia. Talvez. Imagino que sim. Não tinha idade para hoje me lembrar.
Vejo sem ver o pai e a mãe a descer a estrada a pé. Lado a lado, como de costume. Mas não acredito que dessem as mãos. Talvez fossem a falar. Já alheados de mim. Eu berro um choro que me leva a alma pela boca. Não sei o que ele faz. A minha cabeça não é mais alta do que a cintura dele. Não me lembro. Não me lembro. Mas acho que ele mostrou o pénis dele. Hoje sei que se chama assim. Mostrou-mo. A mim que não queria ver nada. Que não vi nada. Que ceguei naquela enxurrada de lágrimas que me encheu os olhos, me molhou a cara e a boca e as palmas e as costas das mãos pequeninas.
O pai e a mãe continuavam a andar, descendo a estrada solitária, mas segura. Iam seguros. Calmos. A falar da vida de um modo. Certamente, a pensar da vida de outro. Não pensavam em mim. Não falavam de mim. Não sei nada disto, mas sei. Soube ali, naquele momento, porque os vi a andar para lá. Para lá de mim. E eu ali. Apesar de não ter visto. Compreendi que já não vinham. Não voltariam atrás. E eu precisva tanto! No meu primeiro momento de vida em que perdi completamente a esperança. Se eles voltassem porque me sentiam a vida, tudo tinha sido diferente. Assim, antes pelo contrário, conheci o meu primeiro ataque de pânico.
O pânico ataca por poucos minutos. Provavelmente, nem um minuto ou dois. O corpo não permite mais. Quedei-me, então, calado, trémulo, espantado, confuso e... curioso. Confusão! Senti a confusão a desequilibrar-me, ficando, no entanto, de pé. Não sei o que aconteceu do mau que foi. Talvez lhe tenha tocado no sexo porque ele mandou. Talvez, quando lhe toquei uma fantasia qualquer me tenha tocado a mim. Talvez, então, nessa fracção de segundo em que a fantasia curiosa ocorreu, eu lhe tenha tocado por voluntariedade. E o ódio de mim pesou-me em cima, esmagando-me. Sei isto. Embora não me lembre. Mas sei.
Eu disse que ia dizer ao pai. Ele disse que ia dizer ao pai. Eu acreditei que a culpa era minha. Tive vergonha do pai. Tive medo do pai. Tive medo que ele contasse ao pai. Mas não queria. Não queria. Se eu fosse contar ao pai, ele é que ia contar ao pai e não me deixava mais entrar na oficina. Não sei era muito importante poder ir para ali brincar. Importante era que não se soubesse porque não poderia ir mais para ali. Tinha que continuar a querer ir brincar ali na oficina e não querer voltar lá mais.
O que terá acontecido depois do que aconteceu? Fiquei a brincar pelas horas que se seguiram até o pai voltar? Com medo que o pai voltasse porque, além do mais, tinha muita vergonha? Tenho a impressão que sim. Que brinquei humilhado com objectos e com pedaços de objectos. Humilhado na liberdade de mexer onde queria, brincar com o que queria. Como nunca pudera antes. Senti que recebia um prémio de consolação. Por ter perdido tudo. Aceitei grato. Morri um bocadinho, sendo eu tão pequenino. E eu nem sabia o que era perder tudo aquilo que sentia que perdia ali naquele momento. Perdia. E ganhava o poder de mexer onde queria. Brincar como queria naquela oficina. Como, acredito, sempre quis.
Mas, estou certo, a verdade era outra. A verdade é que eu não queria brincar. A verdade é que eu precisava de manejar aqueles objectos, daquele modo aleatório, para me distrair. Distraído, acalmei-me. Por isso brinquei mais. Cada vez mais concentrado. E os músculos do meu corpo distenderam-se com o passar dos minutos. Totalmente. Restou a angústia calada, calma. A primeira dor. Não aconteceu mais nada. E tudo o que aconteceu foi tudo para mim. Para sempre.
Gostava de ter outro nome.