O DIÁRIO
Tita
02.12.07
Hoje é especialmente importante escrever aqui alguma coisa. Especialmente porque não tenho nada para dizer, e acho que devia. Devia porque isto aqui é mesmo meu. Sinto que me perco daquilo que sou. Devia escrever aqui hoje para não me distanciar ainda mais.
Esta tudo tão parado dentro de mim, que não vem uma ideia. Penso que devia organizar os pensamentos. Melhor, penso que devia organizar as emoções e expressá-las em pensamentos escritos. O pior é que este também não é o lugar ideal. Não posso pôr-me aqui a falar de mim. A desvelar-me. É, a qualquer nível, desaconselhável. Mas eu lá era capaz de escrever num diário! Num diário "à séria". Acho ridículo.
Acho ridículo espalhar privacidades muitíssimo privadas num diário. Porque é impossível fazer isso. Portanto, quem faz, não faz. É só produção/exibição do ridículo. Por isso não se deve ler o diário de ninguém, e dá tanta vontade. Por isso ninguém deixa ler o seu diário, e quer tanto partilha-lho.
Não há outra forma de dizer a verdade sobre alguma coisa, senão evitando falar dela directamente enquanto se vai falando. Assim como quem vai, por exemplo, dizendo muitas coisas sobre a liberdade - descrevendo-a, valorizando-a, questionando-a...- apenas para não revelar que está preso. Porque quem está preso e não sabe, sente que está preso mas não o sabe dizer.
Fazer um diário, é como tentar o suícido para chamar a atenção dos outros. É tudo feito às escondidas. Sobretudo do próprio.
Tenho as emoções desorganizadas porque não sei o que sinto. Não. Sei o que sinto porque percebo os sintomas. Mas não sei os nomes dos meus sentimentos. Uma dor de cabeça é uma dor de cabeça. Todos sabemos o que é uma dor de cabeça mas nem sempre podemos saber a sua causa. Nem os próprios médicos não sabem exactamente o porquê dos ataques de enxaqueca, por exemplo. Sabem que com codeína a coisa se resolve. Também existem paliativos para as emoções do tipo náusea persistente. E, claro, como para as enxaquecas, não existe nenhum fármaco capaz de as erradicar .
Como é evidente, as emoções são fenómenos originários do cérebro. Saber isto devia tornar as coisas muito mais simples do que são na verdade. Era só pensar com método e jeito. Porém, a capacidade de pensar é um recurso extremamente limitado. A razão é que o pensamento não pode materialmente mudar um facto que já aconteceu. Sobretudo, se é um facto remoto. Acresce a isto a irracionabilidade do trauma, quando existe, e é chamado para o caso. Tornar o trauma irracional é uma habilidade do cérebro para aplacar a dor violenta. A memória engole a dor, apagando-a.
Todos nós somos aquilo que pensamos e pomos em prática. Não interessa o que, no plano das intenções, da essência ou da verdade nós, somos. Não interessa. Cada um actua de acordo com o que pensa. E, mesmo que pense de um modo diferente daquele com que actua, actuando, vai acabar por deixar de pensar como pensava. O pensamento altera-se de acordo com a prática. A nossa prática muda-nos. Porque o pensamento se altera e nós somos o que pensamos.
Para muitas pessoas não há nada pior do que coexistir consigo próprio. Um adulto é composto de uma criança mais um adulto ambos dentro do mesmo corpo alterado. Uma criança com dor não é amada pelo seu adulto porque essa criança não se sentiu amada, pelo menos, pelos adultos que tinham que a amar. Muitas pessoas não suportam estar sozinhas porque a sua criança lhes é intolerável na dor que sente. O adulto que é assim, rejeita a sua criança aflita. E tem toda a razão, embora faça muito mal.
As pessoas cheias de razão (fundamentada nas emoções compreensíveis) podem fazer muito mal aos outros. Nesta medida, as pessoas muito boas podem ser muito más. Ser mau é fazer coisas que provocam dor aos outros. Os outros podem ser gente, animais, o planeta, Deus ou elas próprias. Há muitas crianças a chorar dentro dos adultos do mundo. Estas crianças não deviam ser inscritas nos mesmos colégios. Os presos não deviam estar na mesma prisão.