REPTILÁRIO
Tita
26.12.07
O que pode acontecer a quem puser o pé sobre uma lagartixa? Pode sujar a sola do sapato. O que pode suceder a quem pisar um jacaré? E se eu fosse uma lagartixa. E se eu fosse um jacaré. Ninguém pisa um jacaré. Pelo menos, propositadamente. As cobras egípcias são lindas. Um tanto inexplicavelmente, existem algumas no deserto do Sahara . Para caçar, estas cobras enterram-se na areia. Quem estiver a passear no deserto pode sempre, por azar, pisar uma cobra egípcia . Como se sabe, o seu veneno é mortal. Quem estiver a passear pelo Sahara , pode sempre pisar, sem querer, um animal de baixo porte - um animalzinho. Neste caso, em princípio, não há azar. Pergunto-me se, no Lisboa-Dakar " os atropelamentos de elementos pertencentes à fauna do deserto são vulgares. O que nem sequer vem ao caso. Lembrei-me, apenas.
Portanto, ninguém quer ser uma lagartixa. Quer dizer, quem não quer ser lagartixa, não lhe veste a pele. Passe o cliché . Com efeito, não faz muito sentido acalentar mágoas e ressentimentos pelo mal que nos fizeram. E, na verdade, a condição dos animais rastejantes não vem ao caso porque também não vale a pena arrancar pernas às pessoas ou dar-lhe dentadas mortais. Quer dizer, também ninguém quer ser um jacaré. É ridículo. As pessoas são distraídas e põem os pés em cima de tudo o que está ao seu alcance por baixo. Não é por mal. Também não é por bem. Por os pés em cima é pisar. As pessoas precisam de pisar para caminhar. E "o caminho faz-se caminhando" - título do programa de Mário Soares no Canal 1. Se falei em animais é porque nós, os humanos, também somos assim seres muito naturais. Ser natural é ser de acordo com a natureza. Também não acredito muito que os animais não pensem. E viver numa cidade não é fácil para ninguém.
As pessoas não são perfeitas. Porém, há muitas coisas perfeitas no planeta, a começar pelo próprio planeta em si. As pessoas são perfeitamente capazes de fazer coisas perfeitas. Não sou perfeccionista, mas acredito em contextos emocionais perfeitos. Os gestos certeiros, os olhares indicados, as palavras certas, as acções adequadas a cada vivência. No fundo acredito nas emoções verdadeiras. E só aceito estas. Mais nada. Por insegurança, tornei-me naturalmente especialista em detectar falhas nos contextos. Sou, por consequência, especializada na implosão de situações estáveis que vacilam. Naquilo que me importa, só me importa o tudo ou o nada. Já ganhei muito, apesar de tudo o que se encontra perdido, e me dói. Apesar da dor, o meu balanço é positivo . Reconheço que não é fácil para ninguém estar comigo. Não é justo que outros tenham que suportar as consequências das minhas escolhas. Mesmo que estas escolhas tenham a ver com o modo como eu escolhi viver a minha vida. Mesmo que não sejam verdadeiramente escolhas. Momentos houve em que fingi que era uma lagartixa. Noutras ocasiões, fui um jacaré muito distraído, e, por isso, não decepei ninguém quando podia. Em alguns momentos mordi por estar muito irritada, como as cobras saciadas. Isso foi porque pensaram que eu era uma lagartixa, e eu só estava a fingir. Não se pode, por azar, pisar uma cobra do deserto. De qualquer modo, apressei-me a ir buscar o antídoto . O meu objectivo não é fazer mal a ninguém. Deixem-me estar. E apenas não mintam, que eu sou muito insegura.