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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

FODER OS ESTADOS


Cat2007

28.07.10

 

 

 

Com excepção dos excertos do "Azul" (que, como informei, não voltarei a publicar) e de uma ou outra estória, venho aqui conversar essencialmente sobre temas em que ando a pensar no momento. E, no momento, ando a pensar em vários temas ao mesmo tempo. Dever de gratidão. Lealdade. Lucidez. Ansiedade. Incerteza. Tudo "estados" meus. Penso neles. Nestes meus "estados". Penso também em algumas pessoas que conheço que são ou se comportam nos antípodas destes "estados". Estão no "estados" opostos, portanto. São precisamente elas que me fazem pensar. Ando então a pensar em falta de gratidão, deslealdade, confusão mental, calma e certeza. Vejo isto e vejo a injustiça. Não é justo que me obriguem a gerir e a aplicar os meus diferentes "estados" num confronto de um contra vários. 

 

A propósito, declarei recentemente ao meu terapeuta que estou como um Estado em reconstrução depois da guerra da independência. Recuperação do património cultural, reconstrução dos edifícios económicos e sociais, reorganização das forças armadas, estabilização das fronteiras, e tudo o mais que é suposto fazer em semelhantes circunstâncias. Estou cheia de um um sentido patriotico de mim mesma que me foca num determinado rumo que é um desígnio universal do meu próprio espírito. Já institui a necessidade de visto de entrada. E, em quaisquer circunstâncias, não são concedidos vistos indefinidos. Há um tempo de permanência. Um tempo que pode ser prolongado, de acordo com a minha decisão unilateral tomada casuisticamente. Hoje, estou um pouco como a Sérvia. Em breve estarei como a Alemanha. Quando chegar ao momento "em breve", irei rever as minhas posições quanto aos limites temporais para a estadia de "estrangeiros" e poderei considerar alianças estratégicas com os "parceiros internacionais" que me pareçam interessantes do ponto de vista do mérito.

 

Não culpo ninguém de ser o que é. De andar a correr atrás dos seus próprios interesses. Mesmo quando é claro para a minha lucidez que tais interesses são desinteressantes para os que correm interessados. Não me culpo de não fazer a vontade aos interesseiros do meu património emocional, ainda que façam beicinho. Sempre achei que era interessante reflectir sobre o que me interessa e pensar pouco em termos do meu interesse. Há uma espécie de "mão invisível" no mercado daquilo que importa na vida, mas que funciona com o estimulo oposto ao da teoria de Adam Smith. Ou seja, se cada individuo não procurar satisfazer exclusivamente o seu interesse e partilhar com os demais aquilo que valoriza, pensando no bem comum, aumentará a produção do valor humano que lhe é essencial para viver melhor.

 

Sigo agora os conselhos de alguém para não ser tão cifrada a escrever. É melhor meter por aqui dentro experiências pessoais. Senão ninguém se identifica com isto. Faz-me sentido. A identificação de quem lê é necessária se me importa a partilha. Defendo a partilha. Tenho de partilhar então. 

 

Há um conjunto de pessoas que me querem orientar para fazer o que eu não quero. Se eu não soubesse o que quero, não poderia dizer isto. Diria apenas que há um conjunto de pessoas que querem de mim. Basicamente ir para a cama comigo. Penso que não estarei a ser demasiado simplista ao expressar-me nestes termos. Não tem mal nenhum querer ir para a cama com. Até porque a raiz do desejo é sempre emocional. E só por isso tem mérito. Os desejos de cada um são muito meritórios. Mas não têm mais mérito do que o meu "não desejo". É neste confronto que as pessoas deviam tentar chegar a um acordo comigo. Dentro do meu "não desejo" também existe desejo, em alguns casos, e, noutros, o desejo de fazer coisas diferentes de sexo. O princípio é que não desejo ir para a cama com aquele conjunto de pessoas que actualmente desejam ir para a cama comigo. Não importa se sinto desejo sexual, ou não. Importa que não desejo ter sexo com elas. Para cada uma existe uma razão específica. Muito válida. Não estou confusa nem equivocada. Sei o que não quero e porque não quero em cada caso, dado que sei o que quero para a generalidade dos casos ora em consideração.

 

Parei um instante o raciocínio para reflectir. Reflectir é a forma mais profunda de raciocinar. Por isso são incompatíveis. O raciocínio e a reflexão. Mas porque é que anda tanta gente a querer foder-me? A querer foder-me é bem dito porque se a coisa não vai pelo lado carnal, vai pelo outro. O da facada nas costas. Que sempre mete carne e deita sangue. Mesmo que não meta e não deite. Há tantas miúdas giras por aí. Mas  afinal eu sou aqui alguma criatura "maravilhosa boazona não sei das quantas"? E quem garante que sei fazer bem sexo oral, por exemplo?

 

Tenho afecto verdadeiro e profundo por três das pessoas de quem falo. Na verdade, nem queria falar delas. Mas dedico-lhes este parágrafo. Queria verdadeiramente estas pessoas na minha vida dentro de uma plataforma de consenso sobre os desejos. Penso que por amor no sentido mais puro do termo. Quase infantil. E este meu afecto afecta o desejo sexual, pulverizando-o nos casos em que estou a falar. Sei que uma dessas pessoas não vai ler isto. As outras duas talvez sim. Espero que me compreendam. A agressividade deste texto não lhes é dirigida. São pessoas que estão na minha vida. Desejo ardentemente que continuem. No entanto, aqui já não tenho direito a tomar decisões unilaterais casuisticamente. Aqui vou respeitar quem eu sei que me quer bem. Pondero e considero sentimentos.

 

Voltando aos destinatários desta minha agressão publica embutida em texto, escrevo mais um parágrafo dirigido. Em primeiro lugar, peço o favor de não me foderem mais a cabeça, já que nem em sonhos tiveram a possibilidade de foder mais nada. Não que tenham muita capacidade de me penetrarem o cérebro com os seus instrumentos freudianos de trazer por casa. Mas há sempre um desgaste. E nem um pequeno desgate está fácil de gerir com este calor absurdo que se faz sentir em Lisboa. Isto porque, além do mais, tenho muito que fazer. Estou lotada de coisas desgastantes. Não cabe mais ninguém nesta espécie de "saloon" com que actualmente a minha vida profissional e familiar anda a ficar parecida. Sem desejar ser literalmente entendida, mas em termos mais metafóricos, sempre acrescento que é "proibida a entrada a cães e a chineses", como se sabe dos livros do Lucky Luke.

 

E por fim, não tenho nada contra uma boa foda, mas prefiro uma foda boa.

 

Muito obrigada pela atenção dispensada.

 

AZUL V - PONTO FINAL


Cat2007

12.07.10

  

 

Madalena voltara-lhe na forma de mulher crescida. Acabada de regressar à sua vida, já lhe retomava o pulso e as emoções. “Madalena”. Voltava a dar por si controlando as pernas e os braços e as palavras. Para não ir até ela.  “São horas de ir para casa.”. O seu verdadeiro desejo era telefonar a Madalena para  lhe dizer que não tinha vontade de ir. Para casa. Marcou. Esperou.

 

Teresa: Estou a sair do escritório.

 

Escutou um breve e fundo silêncio do lado de lá da linha.

 

Madalena: Vem cá ter.

 

Teresa desligou. Madalena dissera-lhe que sim. Sentiu os ombros vergarem. Algo indefinível, mas enorme desprendeu-se do ar e assentou sobre si. Levou consigo este peso tremendo até junto dela.

 

Teresa: Olá.

Madalena: Vamos para a cama?

 

Teresa pôde imediatamente aliviar-se da carga que trazia. Mas não de toda. Os espaços onde as palavras ficaram ausentes, eram demasiados densos.

 

Entraram no quarto e despiram-se. Materialmente distantes e caladas. A parede despida, onde a cama baixa se encostava, estava iluminada pela lua redonda, expondo-se. Elas olharam para lá. No preciso instante em que apontaram o olhar, o filme começou. Sob a luz da lua, a parede branca reflectia nitidamente aquelas cores mudas, mas tão vivas. As imagens não tinham som. Para além das cores, que quase encandeavam, compreendiam-se os gestos perfeitos, completos. Não existiam palavras. E este filme que rodava, dizia-lhes que o tempo, quando quer, pode parar. Que os seus vinte anos não chegaram a passar. Os que tinham e os que correram. Apertaram as mãos para juntas darem um passo em frente. Na direcção do tempo colorido parado na parede branca, sobre a cama do quarto de Madalena. Mergulharam lá, afundando deliberadamente os corpos, que iam juntos. Confundiram a imagem com os braços e as pernas. A pele. Os fluidos. Os sorrisos inaudíveis. E, finalmente, suspiraram profusamente. Mas em silêncio.

 

E depois o tempo rolou, escapando-lhes, afinal. Deitaram-se. A lua mudara de posição. A luz despediu-se da parede e inclinou-se sobre a cama desfeita. O ar encheu-se dos sons ofegantes. O tempo rolou sobre elas, e era novo e presente.

 

Madalena: Estás a sentir?

 

Teresa murmurou qualquer coisa com sentido afirmativo.

 

Madalena: E a gostar, querida, estás a gostar?

 

Teresa não era capaz de responder. Não se concedia liberdade. Colou a boca à de Madalena e prendeu-lhe a língua. Para a calar. Madalena investiu, por isso, ainda mais sobre ela.

 

Madalena: Eu perguntei se estavas a gostar. Tens que me dizer!

Teresa: Querida, Meu Deus! Eu não vou aguentar ...cala essa boca...por favor!

Madalena: Sabes, já não me importa que...tu fujas, que morras...Não me importa porque...hoje... hoje posso morrer contigo...Diz-me, Teresa!

Teresa: Muito!

 

Madalena desceu com a boca até à zona molhada e quente do corpo dela. Aí, desfolhou em agitação as páginas do sonho, procurando por muito tempo um pequeno capítulo de um livro. Da libertação. Sem se cansar, sugava-lhe o corpo para lhe engolir a alma toda inteira. Não podia parar. Não, até ela se desfazer. Buscava a suprema felicidade de ficar com ela desfeita nos seus braços. A única forma de jamais a voltar a perder. E volatilizar-se nos braços dela. Para não pensar que tinha de fugir-lhe. Abriu as pernas para a boca de Teresa, que, de alguma maneira, manifestara o desejo de entrar. Ao abrir, sentiu o corpo que oferecia escorrer sobre o rosto dela. O tempo decidiu novamente parar por um pouco, ficando, desta vez, de fora do passado, presente ou futuro. Pelo momento em que as gargantas se abriram no centro da tremenda explosão que se deu.

 

Logo depois, o tempo prosseguiu no seu ritmo muito próprio.

  

 

AZUL IV - O ULTIMO EXCERTO


Cat2007

09.07.10

 

   

 

Levou a mão à boca. Tapou-a, apoiando a base do nariz entre o indicador e o polegar.Voltou a respirar fundo. Expeliu o dióxido de carbono sobre as costas da mão. Desta vez, era para dar sinal a Clara de que podia falar. Esperou, pois, por uma reacção. Talvez para se orientar. Mas Clara não disse nada.

 

Joana: Apenas, não sei se o farei. O que está a acontecer entre nós é muito forte. Forte demais. É uma coisa muito violenta. Eu, simplesmente, fico sem capacidade de raciocinar. A impressão que tenho é que me deram uma droga meio alucinogénica para tomar. Parece que estou com uma “pedrada” monumental. Como posso eu tomar decisões num estado destes? Tenho medo. Não sei onde isto nos vai levar. Pode parecer muito e não ser nada. Apenas uma alucinação. Uma viajem que levará tanto tempo a passar como o efeito de uma droga. Não sei.

 

Agora tremia um pouco das mãos. Ouviu-se e calou-se. Temeu imediatamente pelo que estava a dizer. Pelas consequências. Por isso desejou uma reacção imediata. Não queria tempo para pensar. Mas Clara emudecera. Apenas a fitava. Assim, Joana acabou por concluir que, afinal, não houve reacção porque não haveriam quaisquer consequências. O que dizia tinha razão de ser. Era verdadeiro. E muito sentido. Estava a ser totalmente honesta. E queria partilhar com ela os seus receios. Estava a fazer tudo muito bem. Já não tremia.

 

Joana: Por outro lado, isto colide frontal e globalmente com a educação que me deram. Acho que com a educação de qualquer pessoa. Desejar uma mulher. Santo Deus!  Ninguém me avisou disto. Sobretudo, não fui preparada para uma coisa destas. Não sei como agir. E isto faz de mim o quê? Que género de pessoa nova sou eu?. Sou gay? Lésbica? Não sei se quero ter esse tipo de vida.

 

Clara levantou-se e virou-lhe as costas. Ficou imóvel por alguns intantes. Não fez mais do que o suficiente para deixar Joana em silêncio. Depois voltou a ela calmamente. E começou.

 

Clara: De todo o teu discurso há uma coisa que sobressai. Falas como se isto só te estivesse a acontecer a ti. Parece que estás aqui, dentro desta sala, sozinha. O que me choca.

 

Declarou-se, então, num sorriso cheio de condescendências.

 

Clara: É verdade. Tu és uma mulher e eu desejo-te tanto! Devias saber que, em nenhum caso, um desejo do tamanho deste surge a pedido da razão. Não devias desconhecer que tratamos aqui de coisas que nos ultrapassam a vontade. E, no entanto, agora que já matei um pouco da minha sede em ti, percebo que é uma imposição feliz. Curiosamente, aquilo de que tens medo é, precisamente, o que mais segurança me dá. A quase-loucura. A tua “pedrada”. Tu não vês que nada há a decidir? Nada há para pensar, Joana. Já foi tudo tratado antes de nós sermos chamadas. O que sentimos, percebes? Agora, só te resta decidir o que fazer. E as opções são apenas duas. Ou vives o que sentes. Ou foges. E morres devagar. Se virares as costas, a Joana que tu és desparecerá ao mesmo tempo que eu for desaparecendo da tua vida.

 

Perdera a calma. Falava com ardor. Apaixonadamente. Abria os gestos para oferecer o peito. Cerrava os punhos para se fazer ouvir melhor. Os olhos estavam humidos de fervor.

 

Clara: Mas tu tens dúvidas! Duvidas porque o que sentes “é forte demais”. Não é assim que dizes? Olha, já pensaste se não é fruto de algum desiquilibrio teu? Era bom que fosse. Assim poderias tentar tratar. É por isso que não sabes se vais acabar com o André. Aliás o André é um grande amigo. Não se importará, certamente, de ser usado. Tu és uma mulher profundamente desonesta!

 

Estava na hora da saída da aula a que não foram. 

 

Joana: Eu não te admito que me fales assim!

Clara: Admites, sim senhora. Os teus actos admitem por ti. Não há nada pior do que a falta de coragem e a mentira. Não há nada pior! Eu fui educada assim. Com estes valores. Pela minha mãe. Só por ela. A pessoa mais honesta e corajosa que eu conheço. Foi ela quem me ensinou. Eu teria vergonha de dizer o que tu dizes. Portanto, faz assim, não tenhas dúvidas. Telefona ao André. Dá beijinhos meus lá na Foz. E deixa-me em paz!

 

Cada palavra fora perfeitamente pronunciada. Num discurso impregnado de uma certa amargura altiva. Rodou rápidamente nos calcanhares e afastou-se com passos largos. Joana foi atrás. Conseguiu ultrapassá-la e estacar à frente dela.

 

Joana: Desculpa. Desculpa, mas eu não sou nenhuma desonesta. Nenhuma mentirosa. Talvez não seja tão corajosa como tu. Isso não sou de certeza. De resto eu não fui educada por nenhuma super mulher. Cresci com o meu pai e a minha mãe e as minhas irmãs. Foram os meus pais que me educaram. São duas pessoas normais. Apesar disso, dois seres humanos de excelente qualidade, posso garantir.

 

Clara: Ouve, eu não te posso desculpar um facto de que não és culpada. A baixa qualidade dos teus sentimentos.

 

Era hora da entrada.

 

Joana: Por favor! Estás a ser injusta. Eu também odeio a mentira. Odeio. Nunca viveria na mentira. Tu estás a desvalorizar os meus sentimentos apenas porque eu não tive capacidade de perceber a importância deles numa hora. Nós só sabemos disto há uma hora! Estás a pedir demais, Clara!

Clara: Não vale a pena. Deixa-me passar!

Joana: Não te vás embora. Por favor!

 

Clara não se sentia. Nem, sequer, as lágrimas que lhe principiaram a inundar o rosto rigido rolavam na dependência da sua vontade. Olhou para ela. O coração já explodira há alguns minutos. As lágrimas brotavam-lhe ainda copiosamente. Agora eram vermelhas. Manchavam-lhe a cara de sangue. Olhou-a de novo. Viu que também chorava. Sentiu pena dela e desprezo por si própria.

 

Clara: Joana, deixa-me passar!

Joana: Não!

Clara: Não faças isso.

Joana: Eu...

 

Clara baixou a cabeça. Não desejava continuar a compartilhar lágrimas com ela.

 

Joana: Eu amo-te.

Clara: O quê?

Joana: Eu até posso estar doida. Mas só se eu estiver doida é que isto não é verdade. Eu amo-te. Tenho a certeza.

 

Clara levantou os olhos molhados para os dela. Joana aproximou muito devagar a cabeça do seu peito. Encostou-a para ouvir-lhe as batidas cardíacas. Assim, Joana precebeu que o coração de Clara falava. Ajeitou-se para ouvir melhor. Decifrou milhares de mensagens sobre coisas de que nunca ouvira falar. Os olhos pesavam-lhe. Por isso os fechou.

AZUL III - O PRINCÍPIO


Cat2007

08.07.10

Afinal vou colocar mais dois excertos. Não um. Dois. Não têm tratamento. Ficam por tratar. Aqui.

 

 

 

Naquela casa não se trancavam as portas. Durante tanto tempo, as chaves mantiveram-se operacionais dentro das respectivas fechaduras, porém, inoperantes. Eram de bronze aparente. De aspecto brilhante, pareciam quase escorregadias, Como se lhes tivessem passado um óleo, que não aplicaram realmente. Estavam escrupulosamente limpas. Como tudo na casa da Alameda. As chaves postas nas ranhuras de cerca de vinte portas já não eram nada em si mesmas. Por há muito terem perdido a sua utilidade própria, foram transformadas em partes integrantes das correspondentes fechaduras todas iguais. Deixou de ser importante individualizar cada um daqueles pequenos instrumentos, separá-los do conjunto de que faziam parte, onde apenas uma parte, a outra, funcionava. Apesar de permanecerem nas fechaduras, as chaves desapareceram porque lhes foi retirada a sua função primordial. Trancar portas. Destrancar portas. Trancar portas. destrancar portas… Assim, neste movimento de entrar. De sair. De proteger. De desamparar. De isolar. De libertar. De encobrir. De expor… 

  

Fora a mãe, D. Amélia, quem instituíra a regra. “Não quero portas trancadas nesta casa. Nunca precisei disso na vida”.  Entendia que uma porta, qualquer porta, uma vez fechada, encerrava uma mensagem muito clara: Não. De momento não. Não entrar. Não interromper. Não incomodar. Não importunar. Não pedir. Não dar. Não ouvir. Não falar. Não perguntar. Não saber. Não. Assim se devia ler o que está escrito numa porta fechada. Uma porta fechada com alguém do lado de dentro é, neste sentido, uma entrelinha. Não é preciso estar trancada. “Não deve estar trancada!”, sempre acentuou.Nunca confessara um outro porquê. O motivo maior das suas razões. Ou seja, o medo em princípio absurdo de ter de arrombar uma tragédia trancada. Se as chaves não rodassem os trincos para dentro das fechaduras, nada de verdadeiramente mau poderia acontecer por detrás das portas apenas fechadas. Era vítima da terrível sensação de pânico sintomático da fobia dos estalidos dos trincos a fechar. Assim, naquela casa os encontros entre mãe e filha davam-se essencialmente nas divisões comuns. Cada uma conhecia os passos da outra sem necessidade de os ver para saber. Ambas as vidas circulavam em redor de rotinas reciprocamente desassegredadas.

 

D. Amélia, era baixa e seca. Dava gosto ver como se vestia de tão bem que a si própria sabia ajustar as roupas. As saias pelo joelho, mas justas. Os conjuntos de malha sobre o tronco a delinear os seios pequenos e redondos. Os sapatos de saltos médios davam vista para os tornozelos torneados. Usava o cabelo penteado para trás da testa alta e larga, solto em ondas muito suaves de prata azul por detrás das pequenas orelhas perfeitas de lóbulos escondidos por duas  pérolas cor de pérola. Entreabria regularmente a boca arredondada pequena, mas bem medida. Tinha por hábito automatizado elevar o nariz curto, estreito, afilado, ligeiramente arrebitado na ponta. Possuía uma pele que permanecia sem dar mostras de grandes cansaços. Os olhos castanhos eram muito sérios, pois franziam, profundos por não se ver o fundo, expressivos quer de certezas, quer de interrogações, sorriam nem sempre, mas de vez em quando. Estes olhos carregavam três rugas profundas como golpes de navalha junto ao seus contornos. Precisamente três em cada. Talvez tal coerência de ser, tamanha harmonia para ver, tivesse sido previamente pensada por quem decide destas coisas. Talvez se tratasse do resultado de um jogo de compensações, onde a D. Amélia não foi, sequer, dada a oportunidade de perder.Tinha as mãos descarnadas de grossas veias azuis salientes, que possuíam a beleza da elegância gestual. Incompreensivelmente, os grossos anéis, moldados em materiais preciosos verdadeiros, não lhe quebravam os dedos. Antes lhe acompanhavam, suportando, a graça dos diversos manejares. 

 

Teresa tinha 15 anos quando a mãe lhe entrou inopinadamente no quarto. Primeiro, D. Amélia elevara os nós dos dedos da mão direita fechada. Batera com eles levemente na madeira lacada de branco. Envolveu o puxador com a outra mão e rodou. Antes de empurrar, sentiu a pele envolvida pelo calor dos materiais. Um calor que nascera do surpreendente aspecto de vida, não singular mas plural, pulsante no interior do quarto. Um calor que se espalhara por todas as suas proximidades e que, agora, lhe aquecia os percursos sinuosos do interior das suas próprias veias azuis.

 

Sim, bateu à porta com os nós dedos afectados pelos aros de ouro e prata. Mas fez tal gesto na passada. Ainda se imaginavam os sons dos ecos daquelas ligeiras batidas, e já os seus pés se encontravam quase um metro para dentro do quarto da filha.Não imaginava sinceramente nada do que iria assistir. Confrontada com tudo o que de material se apresentava sob os seus olhos espalhados por espaços muito bem determinados daquele quarto, desejou não ver. Pregou os olhos vagarosamente no chão, deixando-os ficar por lá, incapacitada. Durante aquela lenta e pesada fracção do tempo, foi-lhe concedido apenas o espaço para pensar Teresa, enquanto sua. Unia-as um amor fundamental para ambas. Não podia perder a filha. Esta era a maior imposição da sua vida. Teresa igualmente não podia perder aquela mãe. Cada sentimento individual transcendia palpavelmente a matéria, fluindo, por todos as saídas dos corpos, em direcção ao outro e fundiam-se ambos num encontro memorável, ligando cada uma destas criaturas eternamente.

 

Subitamente, D. Amélia interrompeu-se no pensar sobre a filha. E ponderou gravemente nas razões pelas quais acabara de quebrar um hábito tão fundamental como aquele que tinha instituído. O de nunca se transpor portas apenas fechadas por não estarem trancadas. Porém, realmente, não sabia. Considerou, então, que não sabia porque talvez não fosse possível saber. Certos eventos poderão ocorrer sem razão e com desígnio, motivados pelos resultados que impõem. Certos eventos são factos que simplesmente têm de acontecer, assumindo a sua existência a partir dos actos mais ilógicos e, por isso, menos previsíveis. Desta vez, como não sucedeu há muitos anos no passado, a porta do quarto não se encontrava trancada e, no entanto, a tragédia de novo lhe acontecia. No entanto, o pânico não a tomou porque não ouviu o estalido do trinco que fecha.

   

 

AZUL II


Cat2007

01.07.10

 

  

Joana conduzia em silêncio. Olhando a estrada. Muito concentrada, muito séria. Por vezes, Clara surpreendia-se com o olhar dela. Sempre inesperado. Como se surgisse a total despropósito. Não condizia com a aquela postura distanciada. Sim, de vez em quando e, por breves instantes que se repetiam, sacudia a alma de Clara com o olhar. Cada vez mais azul. Joana olhava. Não dizia nada ao olhar. E no, entanto, dizia tantas coisas em cada olhar breve. Sorria de um modo inquieto e voltava de novo a cara para a rua. Para o trânsito que não sentia. Era preciso concentrar-se na estrada. Nos sinais. Agarrava com força o volante. Como quem quer segurar os pensamentos e prender-se à realidade. Para não cair. O coração batia no peito de uma forma inusitada. Não batia forte nem fraco, mas doloroso. O sangue, assim bombeado, espalhava-se pelo corpo velozmente. Inundava-a de uma sensação de dormência que invariavelmente terminava com choques eléctricos na ponta dos dedos. Por isso, as mãos tremiam. Agarrava o volante ainda com mais força. E olhava teimosamente para o trânsito que não via. O rosto endurecia pelos maxilares, sustentando uma expressão demasiado carregada.

 

Clara olhava para ela. Todo o caminho olhou para ela. Era simplesmente incapaz de não olhar. Na sua cabeça estava gravado o perfil do rosto de dela, as mãos sobre o volante e o peito. Os seios. Clara também não via à força de tanto olhar. Só tinha a imagem gravada no cérebro. Por isso não pensava. Não conseguia pensar. Tinha os olhos enormes, saturados. Subitamente, sentiu vontade de fugir dali. Foi violentamente invadida por uma sensação de ausência de vida. Queria falar. Mas não sabia o que dizer. Percebeu que não conseguia mexer-se. O barulho lá de fora zumbia-lhe nos ouvidos sem parar. Fora assim o percurso todo. E só agora se dava conta do facto. Era urgente gritar. Não gritou. Continuou ali. Imóvel. Muito calada. A olhar para ela. Ela continuava em silêncio. Agarrada ao volante.

 

Há um bom tempo que Joana deixara, sequer de a olhar. Estavam tão perto da casa. Um quarteirão. Encostou o carro em frente à porta do prédio. Desligou o motor. Não queria entrar na garagem. Porquê? Mais uma vez não a olhou.Tinha o rosto marcado pelos golpes do pensamento.Clara perdeu definitivamente qualquer contacto com a realidade. Deixou de sentir o corpo. E a  alma como que se lhe despegava.

 

Clara: Não entras na garagem?

 

Joana não respondeu. Porque não sabia o que responder. Levantou a cabeça e voltou a olhar em frente. Deu à chave e conduziu. O carro andou sozinho ao acaso dentro do espaço escuro e abafado. Até que ficou imóvel num sítio qualquer. Com a energia do grito contido que nunca chegou a soltar, Clara saiu fora do carro e foi encostar-se a uma parede fria. Já não olhava para Joana. Tinha os olhos pregados no chão. Os braços pendiam-lhe, rendidos, ao longo do corpo. Não sentia força nas mãos moles. Nem nas pernas. Joana olhava-a ali a um metro com aqueles olhos brilhantes pregados numa expressão de santa. Absolutamente demolidores!

 

Alguém deu um passo em frente. Alguém deu o primeiro passo. Agora estavam tão próximas. Clara colocou-lhe as mãos na barriga. Pensou em empurrá-la. Joana segurou-lhe as mãos com força. Caíram nos braços uma da outra. De uma forma abrupta. Apertaram-se muito. Joana relaxou os braços e procurou a boca. Clara recusou o beijo. Mas estreitou-a contra si. Agora com mais força ainda. Colaram as caras de perfil. Ficaram imóveis assim. Sem descolar o corpo, Clara meteu a mão direita por baixo da T-Shirt dela. E passou-lhe com a ponta dos dedos pela cintura num movimento horizontal. Suave.

 

Mantinham-se assim a alguns centímetros da fria e cinzenta parede de betão. No equilíbrio involuntário dos corpos esmagados um contra o outro. A lentidão de cada segundo que passa imperturbável num relógio de pulso marca o tempo de cada movimento facial. De acordo com as batidas do coração. Lentamente. Cadenciadamente. Os rostos  colados movem-se no ritmo definido pela pequena máquina. Vão em sentidos opostos que convergem no objectivo do beijo.

 

Respira-se toxicidade dentro da garagem pelos pulmões de quem lá vá. Entram e saem carros, de acordo com a cadência habitual. Os elevadores sobem e descem com gente dentro. Passam malas pendidas em ombros distraídos e outras presas nos dedos inchados das mãos. Os olhos absorvidos  que trespassam a realidade monotonamente densa não as vêm. Não as podem ver. Porque a vida delas corre num mundo paralelo absolutamente exclusivo das suas duas almas unificadas e libertas. Também não vêm ou ouvem ninguém.

 

O cheiro de Joana mistura-se no sangue de Clara e corre-lhe célere dentro das veias azuis. Os cantos das bocas tocam-se. Das bocas delas. O movimento fica parado ali. Naquele momento em que o relógio de pulso deixa de trabalhar. Porque o coração deixou momentaneamente de bater. A máquina recomeça no seu ritmo imperturbável. Logo que o coração retomou. As bocas recomeçam a mover-se. Os lábios encontram-se por fim numa compatibilidade absoluta. As bocas trémulas são retidas. O relógio volta a parar. E de novo o peito parou. O mundo parou.

 

Aquele mundo paralelo feito por alguém à medida das suas almas. Está parado. Mais uma vez. A possibilidade de um beijo queimar sem dor é impossível. Os ponteiros do relógio de pulso recomeçam a andar. É um relógio suiço. Daí tamanha precisão. A cruz branca marcada no fundo vermelho sobressai no pequeno mostrador. Joana não encontra os seus lábios perdidos na cruz que agora é vermelha. O coração perde-se do ritmo dos ponteiros do relógio. Acelera descompassado. Joana molha a boca de Clara com a língua.

 

Os ponteiros do relógio de pulso apagam-se. O mostrador da pequena máquina já não tem números. A cruz é vermelha. Não há mais nada para além da cruz vermelha. As línguas delas estão inundadas de sangue transparente que se mistura. O relógio desapareceu. Agora é a velocidade do sangue bombeado pelo coração desenfreado que comanda os gestos e os sentidos. Clara solta-se num grito de dor. Os corpos giram porque sim. As costas de Joana dão conta da existência de parede fria. O corpo quente de Clara pesa  contra o seu, apertando-lhe a alma. Joana está subitamente mais pequena. As pernas enormes de Clara abrem as suas. Os jeans apertam-lhe as coxas e a barriga. As mãos de Clara têm o comprimento de todo o seu corpo. Fugir é uma impossibilidade não ponderada. Joana deixa que a morte venha. E o seu corpo desfaz-se. O sangue transparente escorre-lhe para fora da boca e pelo interior das pernas para a mão dela. A mão ensanguentada de Clara ampara-a por ali. Sangue branco viscoso escorre e encharca-lhe o pulso. A mão principia a mexer-se para estancar a hemorragia. O que não é verdade. Os seus longos dedos percorrem agora planos interiores escorregadios. Empurra as coxas contra as dela. Quer derreter-se sobre ela. Penetrar-lhe, feita em líquidos, os poros dilatados da pele. Quer viver por um momento único dentro dela. Abre-lhe as pernas com os joelhos e pressiona-a ainda mais contra a parede. Aproxima o seu rosto selvagem e prende-lhe eternamente o olhar. Os dedos trémulos de ansiedade penetram. De novo. O corpo de Joana volta a abrir-se para Clara entrar. Por entre os lagos e caminhos desta viagem sem destino marcado o silêncio sacode as palavras pouco ditas.

 

Clara: Diz-me, já estiveste com alguém assim... desta maneira?

 

A voz saia-lhe entrecortada. Ofegante.

 

Joana: Eu nuca estive com ninguém antes.

 

O corpo de Joana estremeceu violentamente. Clara empurrara os dedos com mais força. Mordeu-lhe a boca.

 

Clara: Porque me mentes assim?
Joana:Eu não estou a mentir.

 

Sorria e olhava-a com os olhos húmidos.

 

Clara:Eu não queria ninguém na tua vida antes.
Joana:Eu olho para ti, e acho que nunca houve ninguém na minha vida antes.

 

A voz quase não saía do peito.

 

Clara: Mas houve. E eu não queria. Não queria...
Joana: Amo-te tanto, querida. Tanto!

 

Os braços de Joana envolviam a cabeça de Clara. Clara saiu de dentro dela. Abraçaram-se num desespero incompreendido. Com força. Olharam-se como se o mundo não existisse para além da extensão total do espaço que os seus pés ocupavam. As lágrimas rolaram pelas face de Clara. Molharam-lhe a boca inchada. Pingavam-lhe dos lábios em grossas gotas que caiam sobre o ombro  de Joana. Estavam tão agoniantemente felizes. Era uma felicidade que lhes doía, mas que também lhes sossegava a alma. Como se a morte as envolvesse sem lhes tocar. Estiveram assim muito tempo. Num silêncio cheio de significados. Repleto de mensagens. Nem todas descodificadas.

 

Joana: Eu queria morrer agora.
Clara: O quê?
Joana: Eu queria que morressemos as duas agora.

 

Clara fitou-a muito séria. Afastou ligeiramente o corpo e deixou cair os braços. Depois, levou as duas mãos ao rosto dela e segurou-o com cuidado. Beijou-a. Cerrou os olhos. Joana fechou os dela. Esperaram assim que a morte chegasse.

  

 

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