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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

OBSESSÃO


Cat2007

07.02.11

 

 

Susan Molly é o meu cão. Um macho não afectado. Só assim podia ter este nick name que eu lhe arranjei. A minha tia tinha um Serra da Estrela gigantesco. Daqueles que têm o pelo como os leões. Não é como os leões, mas faz lembrar. Era um péssimo cão. Mordia a toda a gente, quero dizer. Menos a ela. Com excepção de uma vez. Deixou-lhe um dedo a sangrar. Mas foi só uma vez. Não posso descrever o amor que ela lhe tinha. Só visto. O olhar que ela devotou à fotografia dele depois de morto. Chamava-lhe Lola. A minha tia gostava da Lola Flores. Foi por isso. O meu cão é de raça pequena. Mas é racé. Susan Molly era o nome de um personagem de um filme. Não adorei o filme mas esta criança impressionou-me. Não sei se a minha tia achava que o cão dela cantava. Em castelhano ainda por cima. O meu não representa. Mas tem coisas no temperamento que me lembram muito a Susan. Especialmente a obsessão. Sou obcecada pela obsessão. Fico sempre fascinada a ver. Onde aquilo vai parar. Molly passou-se por causa de um tipo. Passou ao lado do sucesso porque a paixão a fez desacreditar de si. A dor da rejeição sujeitou-a à escravidão da espera da reaceitação. Desapareceu dentro de si. Nunca mais voltou. Nem quando deixou de acreditar nele. Nem quando percebeu que não se deve acreditar em ninguém de uma forma em que não se acredita, mas apenas se sente a dependência. O equivoco de viver com um handicap emocional. Ele mostrou-lhe o buraco dentro do seu ser. Um buraco que existia antes, mas que esteve sempre tapado. Até ao dia em que ele lhe disse “não te quero mais”, O buraco repentinamente visível era muito maior que ele. Mas Susan confundiu-se. Viveu obcecada pelo homem para fugir do buraco. Todo o resto do seu ser, que era bom e especial, foi engolido pelo abismo. No fim do filme, há um grande plano da cara dela. Vê-se perfeitamente que está narcotizada. Morta. Porque os braços estão caídos. Assim a pender. O meu cão passa horas à boca de um buraco negro por onde não consegue entrar. É um cão de caça. Está lá dentro uma ratazana. Não pára de ladrar. O corpo treme todo. Tenho que lhe bater para o trazer para dentro de casa. Mas invariavelmente volta à boca do buraco. Volto a bater-lhe sempre que quer ficar lá mais de uma hora. Quando está longe do buraco nem se lembra. E é muito feliz. Creio que alguém devia ter dado uma enorme sova à Susan Molly.

CEGA


Cat2007

07.02.11

 

 

Vim para um concerto. Mas ainda faltam alguns minutos para começar. Os espectáculos raramente começam a horas. Sou totalmente contra isto. Não vejo nada. Entrei aqui nesta sala para esperar. Está cheia. Para mim, muito menos cheia do que para quem vê. Não tenho a impressão das imagens nos olhos. As pessoas têm o tamanho do que dizem. Por isso são muito mais pequenas. Ocupam muito menos espaço. Esta é uma das grandes vantagens de ser cega. O espaço vital. O meu. Raramente o sinto ameaçado. Sei que as pessoas que vêm se sentem ameaçadas. Com falta de espaço. Sei porque estou sempre a ouvir o que dizem. Não vendo, concentro-me apenas nos sons e nos cheiros. É este o meu modo de sociabilizar. Normalmente as pessoas não falam muito comigo. A deficiência. Sou apenas cega. Mas, por alguma razão, parece que também sou deficiente mental. Acredita-se que não percebo bem os assuntos. Mas isso é um ponto. O ponto injusto. O outro é justo. Não posso falar daquilo que não vi. Sei que os assuntos dominantes se referem ao que se vê. Não, não vi o jogo. Não, não vi o filme. Não, não sei como é a Soraya Chaves. Não, não posso dizer se o Renato Seabra tinha condições para “vencer no mundo da moda”. Não. Comigo não se pode falar daquilo que é só visto. Percebo que não se queira conversar com alguém limitado naquilo que pode saber. Finalmente, evita-se falar comigo por causa do trabalho que pode dar. É o medo de ficar com os movimentos limitados porque se tem que ajudar uma pessoa com limitações. A subir a escada. A descer a escada. A ir. A vir. A respirar. A perceber. Na verdade, não preciso de ninguém para viver sem perigos ou enganos. Tenho o meu cão que me orienta. Viver não é assim tão perigoso. Tenho o privilégio de poder entrar com o meu cão em todo o lado. E ficar a ouvir as respirações impacientes. Já contabilizei. Cerca de 80% dos sons que as pessoas emitem são respirações impacientes. É por causa da pressa ou das concessões de simpatia que têm de fazer. Resta-lhes 20% do tempo. Queixam-se um bocadinho da vida, dizem mal dos outros ou tentam seduzir alguém. Não se importam de fazer isto ao pé de um cego porque acham que também é surdo. Noto que os motivos de maledicência nascem todos de impressões visuais. A apresentação. O modo de olhar. A expressão facial. A imagem das pessoas aumenta o espaço que ocupam. Normalmente há atropelos. No fundo, é disto que as pessoas se queixam. De coisas a que não tenho acesso. O concerto vai começar. 

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