LEITE-CREME
Tita
14.01.12
É fácil deixar a marca do açúcar queimado numa travessa de leite-creme. Vi muitas vezes a minha tia Irene fazer isso com um ferro que aquecia previamente na lareira. Tinha os olhos azuis-claros da cor do céu. Quase transparentes. E como tinha um pedaço de sol dentro de si, havia um brilho próprio que lhe iluminava o rosto permanentemente. É por isso que eu sentia que lá fora todos os dias eram quentes e cheios de luz natural. E aquela enorme cozinha de móveis rústicos de madeira escura era sentidamente ainda mais ampla e respirável.
Esforcei-me sempre para não perder aquilo que se transformou no meu ritual de prazer infantil. Ver a tia Irene queimar o açúcar do leite-creme. Mais ninguém podia fazer aquilo. Porque não conhecia outra pessoa que tivesse assim um pedaço de sol lá dentro. Só ela podia usar um ferro em brasa para criar um efeito de caramelo e um sabor a sol doce. A tia Irene já morreu há algum tempo. Assim, não como leite-creme. Creio que este doce deveria sair da lista de sobremesas dos restaurantes onde eu vá.
Aquilo que se considera “uma má experiencia de vida” é sempre uma ponderação totalmente subjetiva. Ao afirmar isto estou ao mesmo tempo a aceitar que muitas das minhas más experiências não o são para muitos dos demais. A dor é pessoal e a resposta á dor é individual e única malgrado as características universais de todo o ser humano. A dor molda o comportamento.
Embora muitas vezes o processo doloroso nos possa reproduzir inegavelmente mais inteiros ou preenchidos, o sofrimento fica na memória para sempre. E pouco importa que já nem nos lembremos das suas origens. As marcas perdurarão. Muitas vezes sinto-me uma travessa de leite-creme onde por cima alguém queimou açúcar e não era a tia Irene.