Há sete anos perdi o meu gato que, na altura, tinha dois anos. A maior pate das pessoas não gosta de gatos. É o que parece. Daí que talvez isto que disse não tenha impacto nenhum. A questão é que para mim teve. Era um gato diferente. E, como toda a gente diz, não digo isto porque era meu. Mas era. Ia atrás de mim para a casa de banho. Não acho isto normal num gato. Embora já me tenham dito que até é uma coisa comum. Mesmo assim, tenho a certeza que os outros gatos não vão atrás das pessoas para a casa de banho como o meu ia atrás de mim. Além do mais, não me deixava escrever. Deitava-se sempre em cima da secretária e achava que tudo o que eu fazia era para o estimular. Porém, o que eu mais gostava no meu gato era o facto de ele detestar todos os outros gatos e gatas. Estava sempre a tentar bater-lhes. Além disso, também não gostava de mais ninguém a sério. Para além de mim. Acresce a tudo isto que era cor- de- laranja, peludo e como que não tinha nariz. Só uns olhos enormes muito saídos.
Um ano depois perdi o meu cão. Que tinha onze. Não quero falar dele. Basta esclarecer que se tratava do meu melhor amigo, incluindo pessoas.
Até perder o gato, não sabia o que era uma perda. Sabia o que era perder coisas. Um par de ténis, os documentos, um namoro… Nunca tinha perdido um ente estrutural. Só há perda quando não há possibilidade de substituição e fica um vazio para sempre. Hoje sei melhor sobre isto do que outrora. Mais tarde tentei substituir o cão por outro igual e acabei por compreender que o buraco que o outro deixou tinha aumentado. Como uma ferida a reabrir. Foi um problema, então.
Passado um ano de perder o cão perdi duas crianças de 2 anos que não eram meus filhos, mas que mais não podiam ser. Também não quero falar sobre isso. Apenas registar que em três anos, todos os anos, conforme sucede anualmente o Natal, aconteciam-me perdas. Uma sempre muito mais grave do que a anterior.
Durante cinco anos não perdi mais nada que importe registar como perda real. E é então que no ano passado morreu o meu terapeuta de há 10 anos. Aqui, para além do desgosto profundo, foi como que perder o pé, saber nadar mas não me conseguir lembrar de como se fazia.
Agora. No ano seguinte, perdi a minha mãe. E esta é a perda de todas as perdas.
Não sei se para o ano está mais alguma perda à minha espera. Nem é isso que importa aqui agora. A questão é para que serve isto tudo? Não. Não é. O ponto é que tudo isto é normal e espectável. A perda está entrelaçada no processo da vida. Há uma ordem natural das coisas. Se esta ordem for respeitada, os nossos cães e gatos morrem muito antes de nós e os nossos pais também. Quanto aos terapeutas, se morrem, pode ser porque existem doenças no coração. Aqui não há ordem mas acidente… vascular. Seja como for, os terapeutas também são para perder. No fim da terapia. O que ainda não era o meu caso. Mas quase. Portanto, não é de questionar para que servem as perdas. Não interessa. Elas vão sempre acontecer. Não há como fugir disso.
E aqui é que está. Não é para fugir disso. Há que saber viver com isso. Sintetizar os vazios afetivos sérios com o resto que comporta o processo de vida. Não enlouquecer ou ficar doente de outra maneira qualquer. Como disse, há uma ordem natural nas coisas. E isto é a regra. Como há também uma ordenação das mesmas coisas. Se a vida nos afronta com perdas irreparáveis, vazios jamais suscetíveis de serem preenchidos, também é certo que ela nos oferece achados que nos enchem o espírito e reequilibram as coisas. O amor é um deles. Há dois anos encontrei o amor. Não é fácil explicar porque sei que é o amor. Só se sabe o que é o amor quando se vive um. Um não. O. Há uma certeza de definitividade no amor que não existe nos outros amores. Perder o amor é mais uma perda. Nós só sabemos que uma coisa é estrutural na nossa vida se o seu desaparecimento vier a significar uma perda. E mais, o desaparecimento do amor só acontece no fim da vida. O amor não acaba porque morre. O amor acaba com uma perda. O amor que morre, não é amor. Embora possa ser uma coisa boa e divertida.
Em conclusão, a vida é feita de perdas e ganhos. E é assim que é possível manter o equilíbrio. De facto, repito, as coisas têm uma certa ordem e uma determinada ordenação. Enquanto tudo se vai encaixando, sofre-se um bom bocado. Muito, aliás. É claro. Mas também não é só isso. Continuarão sempre a haver momentos muito bons. Creio que se trata da tal lei das compensações ou da sustentação.