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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

LOUCAMENTE


Cat2007

01.10.16

Ontem à noite fui ao cinema ver "Loucamente" (La Pazza Gioia).

 

 

Um filme italiano extraordinário. Trata-se de uma comédia dramática. Conta sobre duas mulheres que se encontram num casa muito especial. Porque nela habitam e são tratadas pessoas com problemas emocionais graves e doentes mentais. Uma delas é bipolar de elevado grau. E anda eufórica. A outra tem uma depressão gravíssima desde infância. Está completamente destruída

 

Das coisas que me tocaram neste filme, gostava de salientar duas. A primeira é a amizade. Duas pessoas perfeitamente fora do mundo real (e a quem todas as pessoas do lado de cá abandonaram) conseguem estabelecer uma relação de afeto muito mais efetiva que a maioria das amizades que vivem por aí. Tinha tudo. Diálogo, solidariedade, lealdade, sacrifício pelo outro. Nesta relação elas crescem ao ponto de admitirem que não pertencem ao mundo de toda a gente. Pelo menos, para já, não.

 

A segunda coisa que me tocou foi um filho. A extremamente deprimida tinha um filho que foi dado para adoção. E este era mais um dado que a empurrava para baixo. Porque amava a sua criança fervorosamente. Era, aliás, o filho que a ligava a este mundo.  

 

Vale a pena ir ao cinema ver como se apresenta o amor e a amizade.

 

Não vou dizer mais nada. Só aconselhar a ver quem não viu. Está no El Corte Inglés.

AZUL - Cap XL


Cat2007

01.10.16

Quando ouviu a chave na porta, Teresa levantou-se muito depressa pela força de um impulso. Imaginou antes que Clara estava em casa. E surpreendeu-se por ela ter também passado a noite fora. Porquê? E onde teria ficado? “Agora não importa”. Clara apareceu. Viu a figura da filha completar-se diante dos seus olhos e teve a impressão que os fenómenos se verificavam com extrema lentidão. Não sabia bem por onde começar. Foi longo o tempo em que foi usada pelo seu próprio espírito torturado. Não se via pronta para contar à filha sobre uma parte da sua vida que ela não conhecia. A parte não resolvida da sua existência. O que ia comunicar a Clara era um dado inalterável. Porque fundamental. Um elemento da estrutura da sua personalidade que, na sua ainda torpe perspetiva, a pintava por completo, conferindo-lhe uma tonalidade doentia. Teresa, sem, porém, o aceitar plenamente, assumira finalmente que era “Lésbica”. No entanto, Teresa não aceitava que gostava de mulheres. Porque isso não era verdade. Teresa amava uma mulher. Nunca sentira nada por outra que não fosse aquela. Madalena. Com quem praticava todos os atos inerentes ao amor. O que lhe dava um prazer extasiado. Não poderia renunciar mais a tal prática. E por isso também não podia esconder-se mais. Sobretudo da filha. Tudo isto tinha a ver com a verdade. Dizer sempre a verdade, como a mãe Amélia lhe ensina. Lembrava-se que foi porque não disse a verdade à mãe que a sua vida mudara tanto. Nunca chegou a conversar com ela sobre a verdade de quem era. Embora a mãe lhe tivesse dito um dia mais tarde, quando Teresa já estava casada, que a verdade mais importante é aquela que devemos a nós próprios. Só aí Teresa compreendeu que Amélia a reconhecia e amava como era. Que tinha pena que a filha se tivesse casado. Com exceção da criança maravilhosa que nascera. Mas aí já era demasiado tarde para ela e para Madalena. E sendo verdadeira consigo própria, Teresa reconhecia finalmente que a sua homofobia era sua. Nada tinha a ver com a mãe Amélia. Tinha-a adquirido pela adaptação da sua personalidade ao mundo. Porque Teresa, que foi criada como se fosse um ser especial e mágico, andou a imaginar que era perfeita. Aqui Amélia tinha culpas. Muitas culpas. Ainda agora, no momento em que ali estava diante da filha para lhe contar tudo, Teresa sentia que ser lésbica era entrar no espírito de uma pessoa que se opunha à sua ainda atual imagem de si própria. Por isto também, se via pouco segura e por isso um tanto incerta sobre as suas decisões e atos subsequentes. Era, porém, certo que Teresa imaginava a verdade. Não a vendo, acreditava nela com um fulgor religioso, Tinha fé na verdade, deixando-se guiar por ela em submissão plena. A verdade conferia-lhe a força e a convicção com que enfrentava a vida. A verdade não era a verdade. Era a verdade de Teresa. Absolutamente subjetiva. E foi assim que, durante os vinte anos de vida de Clara, onde jamais se aproximou sequer de uma mulher, Teresa viveu na mais pura verdade. Agora os últimos dias de angústias misturadas com o mais profundo prazer e amor, empurravam-na para o plano intolerável da mentira. Daqui apenas poderia sair se contasse tudo à filha.

Começou, por falta de uma boa ideia, a caminhar num lento, firme e pesado vai e vem. Mesmo em frente dela. Como se estivesse a prepara-se para dizer algo muito bem elaborado, Enquanto as ideias necessárias lhe fugiam velozmente do espírito. Clara, em silêncio, olhava para o movimento grave da mãe com uma expetativa dolorosa. Perfeitamente convencida pela simulação.

A certa altura, Teresa deixou de poder suportar aquela situação. O espirito turvo manietava-lhe o cérebro já exausto. Por isso começou a falar com as primeiras palavras que lhe saíram da boca.

Teresa: Passaste a noite fora e não me avisaste. Posso saber onde?

Clara: Bom dia, mãe. Não quis ficar aqui sem si. E a mãe anda tão embrenhada no seu novo romance, que achei que não valia a pena avisar.

Teresa: Tens sempre que avisar. Como eu faço contigo, aliás. Esta casa tem regras, menina. Além de que, nenhum romance que exista vai alterar a nossa relação e as regras que a regem. Onde dormiste?

Clara: Em casa da Joana.

Teresa sentiu o peito comprimir-se um pouco.

Teresa: Como assim em casa da Joana?

Clara: Porque não em casa da Joana?

Teresa tinha um propósito para aquela conversa. Não era oportuno estar a querer agora apurar junto da filha a razão pela qual dormira em casa da amiga lésbica. “Se bem que isto é muito estranho”. Mas deixaria essa conversa para outra ocasião. Agora importava o que importava. Assim, em vez de a inquirir, aproveitou a deixa.

Teresa: Sabes, eu não me esqueci de como ficaste incomodada das vezes que te questionei em relação à Joana. Chegaste a chorar. Creio que imagino porquê.

Baixou a cabeça, franzindo a testa.

Teresa: Penso que sei também as razões que te têm levado a evitar tocar mais nesse assunto.

Clara apertou as mãos com força.

Teresa: Não sei como chegaste lá. Mas parece-me que chegaste. Enfim, eu odeio a mentira, Clara, tu sabes.

Teresa sentia a tensão na garganta quando falava. Doía-lhe. Como lhe doía o peito todo até às costas.

Clara ficou aflita. "Eu bem dizia que ela sabia. Era tudo uma questão de tempo. E agora. Como vai ser?"

Clara: Eu sei mãe. Mas saiba que a verdade nem sempre pode ser pronta. A mãe sabe. Quem tem de a proferir quantas vezes não a domina. Quer dizer, se quem tem que dizer a verdade não a conhece toda, como a pode revelar? Percebe onde tento chegar, mãe?

Teresa sobressaltou-se. O que Clara acabava de dizer revelava um inesperado conhecimento dos factos. “A Joana contou à Clara que eu ando com a Madalena. Eu já devia estar à espera disto. E agora?”.

A réstia de autodomínio com que começara a falar dissipava-se agora. Estava trémula. Era necessário abrir rapidamente aquela conversa.

Teresa: É um pouco assim é. De qualquer modo, neste caso, não é só isso. Neste caso, a verdade não foi dita em função do cometimento de um erro grave. É sobre este erro que eu quero falar-te.

Clara: Que erro, mãe?

Teresa: O erro de uma má escolha. A opção por um determinado tipo de vida.

Clara: A Joana não é nenhum erro na minha vida, mãe.

Teresa: Desculpa… a Joana?

Teresa não a alcançara de imediato.

Teresa: Eu não estou a dizer que a Joana está enganada. Antes pelo contrário.

Clara: Enganada em quê, mãe? A Joana não é responsável por nada.

Teresa: Responsável?

Ficaram em silêncio. Porque Clara já tinha dito o bastante. Teresa vislumbrou, assim, um clarão de luz ao longe que se aproximava rapidamente dela. Em brave tudo se iria tornar tão claro que a iria cegar. Antes do impacto inevitável com semelhante luz, Teresa teve oportunidade de ver um pequeníssimo filme entre Clara e Joana onde se viam numa fração de segundo todos os sons e imagens das duas que já tinha visto.

Teresa: Não é um erro? Queres dizer…

Clara: Não é um erro porque existe um sentimento fortíssimo entre nós, mãe. Não imagina que eu me envolveria com uma mulher de um modo leviano. E…

AZUL - CAP XXXIX


Cat2007

01.10.16

Clara aproveitou a ausência da mãe naquela noite para ficar com Joana.

Clara: Amanhã tenho que sair cedo daqui. Quero chegar a casa entes dela. Já decidi. É amanhã que lhe vou contar de nós.

Joana: Tem mesmo que ser?

Clara: Tem, amor. Já falámos sobre isso.

Joana: Sim.

Joana sentiu medo. “E se eu lhe contasse que é a mãe dela que anda com a Madalena, não seria melhor? Tirava-lhe este peso todo de cima. E ela já poderia ir ter com a mãe mais tranquila”.

Clara: Onde estás?

Joana: O quê?

Clara: Parece que está ausente. O que se passa? Já não gostas de mim?

Joana: Que parvinha.

Clara: É só para te ouvir dizer que gostas.

Joana: Gosto, não. Amo-te. Amo-te tanto que estou muito preocupada contigo. Não sei o que vai suceder-te amanhã.

Clara: O que vai suceder? A minha mãe vai entrar em choque. Eu sei que ela é homofóbica. Fui reparando nisso ao longo da vida. Mas depois há-de passar-lhe. O que eu não posso é deixar de lhe contar a verdade, já te disse.

Joana: Olha que não sei, amor.

Clara: Querida, chamaste-me aqui para falar muito?

Joana: Não, anjo.

Clara: Então, vem.

Clara acabara de acordar do sonho daquele corpo nu. Que se estendia ali mesmo atrás de si. Não precisava de olhar para o ver. Tinha-o totalmente colado à pele. Entre as pernas tinha pedaços enrolados de lençol branco. Exibia as costas nuas. Estava sentada assim naquela cama cheia de humidades e odores. Ao ritmo acelerado com que o tempo lhes escorregava das mãos, em breve estariam cercadas pela madrugada escura. Clara projetou o pensamento na madrugada para se entristecer. É fácil fazer subir a angústia no meio da madrugada. Por ser nela que correm as horas mais silenciosas e mais obscuras. O espírito como que se afunda entre elas. Mas, na verdade, Clara criava um frágil artifício. Tinha a alma demasiado iluminada para se afligir com a escuridão profunda daquelas horas da noite. O que realmente não queria era pensar que depois da madrugada seria manhã. Sempre que se via junto ao corpo exausto de Joana sobre a cama, perturbava-se muitíssimo com a chegada da manhã. Com o sol de inverno. Não desejava que a manhã chegasse. Não queria sair do corpo dela.

Clara: Eu não quero a manhã.

Joana: Eu procuro não pensar nisso. Quando faço amor contigo, finjo que a seguir à madrugada é noite clara.

Clara: Eu sinto que tu também não queres ver o sol amanhã.

Joana: Não. Mas também não quero falar nisso. As coisas dolorosas ferem mais quando se fala delas. Parece que se materializam com as palavras.

Logo de manhã, o sol já cegava. O céu do dia apresentava-se luminoso em tons de amarelo. Assim cheio de energia fundamental. Clara não se lembrava já que ontem quisera que o sol não acordasse. Agora pensava que, antes pelo contrário, em como aquela luz era vital. E inspirava profundamente a luz solar. E expirava todo o brilho da manhã pelos olhos. Estes impulsos de vida reanimavam-lhe os músculos e suavizavam-lhe a face. A boca entreabria-se num leve sorriso que parecia inalterável. Olhou para ela. Joana. Loura. “Linda!”. O sol. Sentiu-se encandear quando ela lhe raiou de surpresa com aquele olhar azul do céu. Teve que fechar os olhos. Milhões de pontos luminosos romperam aqui e ali na sua momentânea escuridão. Estavam à porta de casa de Clara.

Joana: Adoro-te.

Clara: E eu a ti.

Joana: Boa sorte, anjo.

Clara saiu do carro. Joana esperou que ela entrasse no prédio. Depois arrancou.

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