AZUL - Cap LVII
Cat2007
11.10.16
Clara virou os olhos em direção ao chão. Ficou a olhar para as pedrinhas no meio da terra. Mexeu-lhes.
Clara: Eu já não posso continuar. Aconteceram coisas.
Joana: Eu sei que aconteceram coisas. Mas o que aconteceu entre nós?
Tal como o rosto, a voz parecia molhada.
Clara: O que sabes tu?
Joana: A Madalena disse-me. A tua mãe revelou que…
Clara: A Madalena. A Madalena anda com a minha mãe desde que acabou contigo. Tu sabias. A minha mãe disse-me que tu sabias. Quem te contou? Foi também a Madalena?
Joana: Não, não. Eu vi a tua mãe a sair de casa dela. Ou melhor só soube que era tua mãe quando nos apresentaste.
Clara: Portanto, tu sabes da minha mãe desde o princípio. E nunca tiveste a decência de me contar.
Joana: Desculpa. Mas não é assim. Eu tive a decência de não te contar. Não podia meter-me entre ti e a tua mãe. Quem tinha o dever de contar era ela.
Clara: Mas quando eu andei aí doida a pensar em contar-lhe de nós… nem aí foste capaz de me ajudar. Se eu soubesse que ela era lésbica…
Joana: Se soubesses por mim, estarias a fazer-me isto igualmente. Mas talvez de uma forma ainda mais grave.
Clara: Não fales do que não sabes, Joana! Além do mais, tu e a minha mãe partilharam a mesma mulher. Que nojo!
Evidenciava toda a raiva que a consumia. Joana calou-se amedrontada. Clara fechou-se então num silêncio eterno. Joana deixou-se invadir pelas lágrimas que há muito lhe molhavam as faces. Conformava-se ali com o peso do mundo que lhe pressionava o corpo. Tinha aquele peso precisamente sobre o colo. Baixou os braços. Se fosse o caso, deixar-se-ia esmagar. Também não olhava Clara. Não queria. Desconhecia-a. Ao fim de um tempo que parecia horas passadas, Clara murmurou:
Clara: A minha mãe é lésbica. E isso é a única coisa que importa aqui.
Estas palavras murmuradas ajudaram Joana a subir. A emergir da ausência de lugar por onde andava a vaguear. Endireitou-se ligeiramente. Clara repetiu-se. Mas agora em tom claramente audível:
Clara: A minha mãe é lésbica de toda a vida.
Parou de dizer. Depois recomeçou no meio de uma gargalhada dolorosa.
Clara: Que disparate! Lésbica de toda a vida. Todas as lésbicas o são. Mesmo que não saibam desde sempre. Eu, por exemplo só soube quando te apertei a mão no cinema. Quem me dera ter podido não fazer isso. A minha mãe é lésbica Joana!
Aumentava o tom. Joana tinha os olhos muito abertos.
Clara: Mentiu-me a vida toda. Era isto que eu devia ter dito logo. A minha mãe é uma mentirosa de toda a vida. A mulher que diz odiar a mentira é a maior mentirosa que eu conheço. E é a minha mãe.
Repetiu a mesma gargalhada com o mesmo toque perfeito de dor.
Clara: Mas ela não acha que mentiu. Ela deixou de… como se diz isto… ela deixou de praticar desde que eu nasci.
Olhou para Joana sem bem a ver. E riu-se de novo.
Clara: Pois aí está. De acordo com a porcaria de definição do teu dicionário de merda, a minha mãe não é lésbica desde os vinte anos. Sendo que agora é de novo. E com a tua Madalena. Pois é. Ela teve uma Madalena na vida dela há vinte anos atrás. O único amor. Agora a mesma Madalena voltou. A tua Madalena. Segundo o teu dicionário, a minha mãe foi lésbica. Deixou de ser. E agora já é de novo. Porque recaiu nos braços da tua Madalena que é o amor da vida dela.
Apontou o olhar para Joana. Esta continuava com os olhos abertos e nem pestanejou no seu silêncio obstinado. Joana queria ouvir tudo. Perceber tudo muito bem. Não sairia dali sem isso.
Clara: Portanto, nos termos do teu dicionário, a minha mãe não mentiu, afinal. Mudou de vida. Omitiu uma parte do passado. Passou a ser outra mulher depois de eu nascer. Depois, durante os últimos anos, durante o tempo da minha estúpida vida ela não foi uma lésbica.
Clara repetia-se.
Clara: Por isso não mentiu a mim nem a ninguém. A seguir a Madalena reaparece e a minha mãe volta a ser lésbica. E é aí que me vem contar. Portanto, como me conta, não mente. Ela é honesta. Acho que foi isto que ela me quis dizer. Não sei. A minha cabeça está a explodira. Mas mente. Oh, se mente! O coração dela pertenceu sempre pertenceu à Madalena. A minha mãe é lésbica de toda a vida, Joana. E isto, este detalhe, é que ela se esqueceu de mencionar no passado. Disto é que não me informou. Enganou-me. E a culpa de tudo é minha. Porque ela se castrou por minha causa. Foi por mim que ela sofreu durante tanto tempo.
Voltou a rir-se. No entanto, o riso, os grossos lábios abertos, estava molhado por dois veios de lágrimas de grosso caudal. E o corpo tremia-lhe levemente.
Clara: E eu também sou lésbica. A minha mãe sacrificou-se para nada, já vês. Enfim, temos este problema na família. Esta praga. Isto entre mim e ti não é resultado de nenhum amor muito especial. Se não fosses tu, seria outra. Por isso o nosso amor, Joana, já não me parece tão belo. Porque… de facto, não é belo. É um sentimento apenas consequente de uma orientação que eu tenho. Poderia ter vivido as maravilhas que vivi contigo com outra que tivesse vindo antes de ti. O nosso amor assim é um acaso. Daqui a uns tempos, quando me curar de todas estas feridas, vou viver as mesmas sensações com quem vier. Nós, juntas, não somos melhor que ninguém. Aliás, tu já tinhas algum passado e muitas vertigens vividas. E eu não me posso esquecer que, além do mais, quando te conheci, tu estavas louca pela Madalena. A Madalena da minha mãe. E sofreste quando ela te trocou pela minha mãe. Não há-de ser mais nem menos do que sofrerás agora que tudo terminou entre nós.
Clara deixou-se cair para trás sobre um tronco de árvore áspero que lhe amparou as costas. E foi de imediato engolida por um choro trémulo e ofegante. Joana esfregou o rosto com uma mão para apanhar a água que ainda não tinha parado de correr. Inspirou profusamente, aspirando pelo nariz os restos de líquido salgado. Levantou-se.
Joana: Acho que não é preciso dizeres mais nada. É melhor não dizeres mais nada. Já percebi. Vou andando. Tenho mesmo que ir. Desculpa.
Deu o primeiro passo. Depois acelerou os movimentos em sentido contrário ao de Clara. Para se antecipar à nova vaga que se aprestava para lhe cobrir o corpo. Não desejava naufragar ali aos olhos de Clara. Que desaparecia, ela própria engolida pelo mar.