AZUL - Cap LIX
Cat2007
13.10.16
Finalmente Teresa deu-se conta de que Clara pouco ou nada falara. E era urgente ouvir a versão de Clara sobre toda aquela estória. Fez então um silêncio mais demorado para ela entrar.
Clara: A mãe reagiu tão mal quando eu lhe contei da Joana. Destilou tanta homofobia…
Teresa: Clara, aconteceu uma coincidência trágica nesse dia. O dia que tu escolheste para me contar foi precisamente o dia que eu reservei para te falar sobre a minha própria vida. Portanto, apanhei um choque quando me vieste falar da Joana. Tu antecipaste-te. E eu esqueci tudo e só me pude recordar que sou mãe. A minha vida foi tão complicada, que eu só queria chamar-te a atenção para o perigo que é amar uma mulher. A dor que nos pode causar. E a dor que podemos provocar. Também me preocupei muito com as questões sociais. É difícil ser homossexual. A discriminação é um facto. Não queria que vivesses isso. Já bastava eu. É possível que tenha desconsiderado a tua inteligência e a tua sensibilidade. Mas fiz o que naquele momento era capaz. E se eu não estava nada capaz. A minha cabeça estava às voltas. Porque eu queria assumir-me de uma vez por todas. Para poder viver em paz com a Madalena. Mas não esperava que tu estivesses a passar, mais ou menso, pelo mesmo que eu. Não suportava a ideia de te ver sofrer.
Clara: Em consequência, a mãe zangou-se comigo e a Madalena deve ter-se zangado consigo.
Teresa: Não. A Madalena podia esperar uma melhor oportunidade para eu te contar. O que sucedeu foi que eu é que me zanguei com ela. Cheguei a agredi-la. Zanguei-me com ela porque fantasiei que ela é que era a responsável por eu ser homossexual. Pensei que, se nunca a tivesse conhecido, nunca teria descoberto a minha orientação. Um disparate, já vez. A questão é que comecei a pensar que tu também eras homossexual por eu ser. Por razões hereditárias ou então por incapacidade de te dar uma educação que te levasse para rumos diferentes. Não sei, juntei todos estes dados e fiquei com raiva dela. Como se ela fosse a culpada de ti.
Clara: Continuam zangadas, mãe?
Teresa: Não. Já conversámos. Mas, como te disse há pouco, não retomámos nada porque eu tenho este problema contigo para resolver. Sem tratar de nós, não tenho ternura para dar. Não tenho coração que preste. Tu és a pessoa mais importante da minha vida.
Clara: A mãe também é.
Teresa: tenho que estar segura que nada de mal te acontece. E sobretudo tenho de ter a certeza que não sofrerás por minha causa.
Clara: Mãe, acha que, se não ficar com a Joana, poderei tornar-me num sucesso do seu tipo?
Teresa: Essa pergunta faz sentido. Embora pareça que estás a brincar. Mas, até podias, de um certo ponto de vista. És inteligente. Forte. Segura. E linda. Mas não devias. Nem o vais fazer. Especialmente porque és mais clarividente do que eu. Lá está o teu nome. Clara. Tu és clara. E lúcida sobre as tuas emoções e sincera. Tu nunca poderias ser um sucesso como eu fui. Uma hipócrita. É assim, qualquer pessoa esperta e sem uma vida privada capaz corre o risco de se transformar num portento profissional como eu. Na verdade, ser um portento profissional também não é grande coisa. No meu caso significa apenas que cheguei muito cedo aos objetivos. Mas a falta de vida privada, de uma pessoa, desumanizou-me nas relações de trabalho. Na sociedade somos amigos. Mas, no fim do dia, cada um vai à sua vida. Creio que poderia ser melhor advogada do que sou. Se exercesse com mais alegria.
Clara: A mãe não diga absurdos. Não poderia ser melhor do que é.
Teresa: Pois seja. Mas a verdade é que escolhi mal. E eu não devia ter escolhido nada. A vida correria e eu teria que deixá-la correr. Mas não. E por isso não fui feliz. Tu não tens culpa de nada. Não foi por ti que eu me mantive no equívoco. Foi mesmo por mim. No máximo, a tua existência poderá ter constituído um magnífico pretexto. No mais, agradeço-te por existires. Tu foste o único afeto profundo que eu tive em toda a minha vida de mulher adulta. O teu afeto sustentou-me e manteve-me equilibrada. Sem ti, eu não seria coisa nenhuma.
Clara: A mãe acha que estas coisas acontecem porquê. Porque sou eu lésbica?
Teresa: Não sei. Ninguém sabe. Agora vejo claramente que não sucedeu contigo por minha causa. Acho eu. E se foi por minha causa, se for por herança genética, também não tinha como evitar a coisa. Mas, na verdade, não sei porque razão tu e eu somos lésbicas.
Fez uma ligeira pausa.
Teresa: Hoje eu aceito e compreendo bem que tu e eu somos pessoas diferentes. Com os anos, embora eu te tivesse dado liberdade e ensinado o que é a responsabilidade, a nossa relação tornou-se demasiado próxima. Tanto que nos confundimos. Tu querias ser como eu. E eu queria fazer-te à minha imagem.
Respirou fundo e continuou.
Teresa: Agora, o que eu gostaria é que tu fizesses as tuas próprias escolhas. E as assumisses com caráter. Apesar de tudo, acho que te eduquei relativamente bem. Pelo menos, o melhor que pude. Sei que tens caráter.
Clara: Eu já tinha decidido, mãe. E estava tudo tão certo. Mas depois vieram as suas revelações e eu senti o amor da Joana como uma doença. Mandei-a embora.
Teresa: Como? Uma doença porquê.
Clara: Olhe, não sei bem. Pensei que me tinha apaixonado por uma pessoa determinada. Mas afinal, estava a sentir vertigens por uma mulher qualquer. Porque eu afinal sou lésbica. Percebe onde quero chegar?
Teresa: Espera lá. Tu só te consideraste lésbica depois de eu te contar de mim?
Clara: Sim. No meu entendimento, eu não era lésbica. Amava aquela pessoa que, por coincidência, era uma mulher.
Teresa: Filha, e é mesmo assim. Quando se ama dilui-se a orientação. Porque nós deixamos de estar disponíveis para outras pessoas. Para outras mulheres. Ser lésbica significa que tu podes, potencialmente, amar outras mulheres. Mas amar implica que só podes ter uma determinada qualidade de sentimentos por uma. Uma que é especial. Uma e não um. Se és lésbica é assim. Claro que te apaixonaste pela Joana por ser a pessoa que é. Do ponto de vista físico, psicológico e emocional. Mas isso só sucedeu porque tu és lésbica. Se não fosses lésbica, nem reparavas nela. Por outro lado, não penses que se sente o que tu sentes pela Joana por uma mulher qualquer. Espero que não aches que foi ela mas poderia ser outra.
Clara: Pois foi isso mesmo que eu pensei. Que foi ela mas podia não ter sido e eu sentiria o mesmo. Estou a ver o disparate. Mas também pesou o facto de ela saber que a mãe andava com a Madalena e nunca me ter contado. A somar a tudo isso, só me lembrava que a Joana tinha andado enrolada com a Madalena. E fiquei toda enojada.
Teresa: Clara. Por favor. A miúda não te podia dizer nada. Achas que ela ia assumir a responsabilidade de me fazer cair do pedestal que tu inventaste para mim? Aposto que estavas sempre a dizer-lhe como eu sou magnífica. Eu sei que tu fazes isso com toda a gente. A que propósito ia a Joana causar um cataclismo entre nós? Se eu não queria sair do armário, era uma miúda de vinte anos que me ia fazer sair à força? Olha, eu acho que ela se portou à altura da situação. Ainda mais se tivermos em conta que ela foi rejeitada pela Madalena por minha causa. Muito madura e bem formada. Sobre os teus nojos, tenho a dizer-te que os terás sentido por mim e não por ela. Sempre soubeste que elas andaram e nunca te agoniaste. Só te deu o nojo quando eu te revelei que andava com a Madalena. Portanto, o nojo foi de mim. Ainda tens nojo de mim?
Clara: Não mãe. O choque já me passou. E agora que estamos a conversar, eu já a compreendo.
Teresa: Bom, mas para o que importa, tu terminaste com a Joana. E ela?
Clara: Ela o quê?
Teresa: O que te disse ela?
Clara: Foi-se embora.
Teresa: Sei que não saíste muito de casa.
Clara: Eu não sai de todo de casa.
Teresa: Pois… Bom, eu pensei que ela não estivesse cá. Não sei. Pensei… olha, não pensei. Alheei-me da vida cá de casa. De ti. Achei que a tua dor era só comigo. Todas as noites, quando chegava do trabalho, ia escutar à tua porta. E apercebi-me sempre que estavas. Sabia que não me querias falar. Dei-te tempo. Mas, como disse, pensei que a tua dor era só comigo.
Clara: E era.A dor principal era consigo. Não tive espaço para sentir dor por causa da Joana. em relação a ela senti outra coisa. Mas já lhe digo.
Teresa: Está bem. Mas não pensei que terminasses com a Joana. A Madalena disse-me que isso iria acontecer. Eu nem quis admitir essa possibilidade.
Clara: O que lhe disse a Madalena.
Teresa: Que eu não te devia ter contado porque tu irias acabar com a Joana.
Clara: Sensível essa Madalena.
Teresa: O que lhe disseste?
Clara: A quem?
Teresa: À Joana.
Clara: Tudo o que lhe contei mais o que a mãe acabou por intuir. Mas, sabe, nem me lembro bem como foi. Sei que chorei muito no fim.
Teresa: Mas falaste-lhe dos teu sentimentos por ela?
Clara: Não me lembro bem. Fui um bocado confusa a explicar-lhe.
Teresa: Mas o que entendeu ela?
Clara: Não sei. Acho que entendeu que eu não tinha condições emocionais e psicológicas de continuar com ela.
Teresa: E hoje sentes-te em condições de estar com ela ou não?
Clara: Eu não tenho vontade de viver se ela não estiver comigo. Pronto. Já lhe disse. Sem ela não me apetece sair de casa sequer.
Teresa: Não vais à faculdade há séculos, não é verdade?
Clara: É verdade. Não consigo.Também havia a possibilidade de a ver. E não tive coragem.
Teresa: Vais chumbar a quantas disciplinas?
Clara: Provavelmente a todas.
Teresa: Porque não tens a Joana.
Clara: Isso.
Teresa: Quero que a procures imediatamente, menina.
Clara: Não sei se ela me aceitaria.
Teresa: Se não lhe telefonares, telefono eu.
Clara: A mãe… não tem ciúmes?
Teresa: Claro que sim. Mas agora felizmente é quase tudo o que resta.
Clara: E o que é que eu faço?
Teresa: Telefonas-lhe. Não é?
Clara: E o que lhe direi?
Teresa: Deves ser capaz de descobrir isso. Eu sou tua mãe. Não é suposto ajudar-te a compor conversas dessa natureza.
Clara: E a Madalena, mãe?
Teresa: Tens ciúmes?
Clara: Sim. Bastantes.
Teresa: Infelizmente, essa história acabou. Ou seja, eu estou a fazer por isso.
Clara: Tem a certeza?
Teresa: Não. Mas ela não vai perdoar-me esta ausência sem notícias. Disso tenho a certeza. Creio que agora tudo depende dela. Ou talvez não. Não sei. Só hoje é que estou a falar contigo.
Clara: Mas, e se não voltar para a Madalena, haverão outras?
Teresa: Não faço ideia. Não sei. O que sei é que estou finalmente de férias. Graças a ti.
Clara: A mãe tem que lhe falar. Ou quer que fale eu?
Teresa: Não, menina. Eu falo.