AZUL - Cap LXXII
Tita
23.10.16
Clara: por acaso preciso que me explique. Porque suspeito que há-de ser algo diferente do que eu sinto pela Joana. A nossa paixão não nos engole. A nossa paixão dá-nos vida. A sua paixão devasta-a?
Madalena: Sabe que as palavras têm significados múltiplos. Uma paixão devoradora, é uma paixão que me consome. Que nos consome, aliás. A Teresa sabe o que eu quero dizer. Não sabes, Teresa?
Teresa: Sei. Absorve-nos.
Teresa respondeu com os olhos azuis postos nos dela. Fitaram-se a fulgir durante alguns momentos.
Clara: Parece que estão a falar de uma coisa que vos desgasta.
Madalena: Sim. É algo que nos deixa exaustadas física e mentalmente.
Joana: Clara, nós também sentimos essas coisas.
Quando disse isto, olhou para Teresa e enrubesceu.
Mas elas têm a experiência que nós não temos.
Teresa: Onde queres chegar, Clara? A que propósito vens falar da minha experiência na intimidade? Mas perdeste completamente a cabeça? De facto, esta conversa descambou. Eu não devia ter permitido que a Madalena te respondesse à pergunta da paixão. E de como é a nossa paixão. Estás a entrar despudoradamente na parte da minha vida que não te diz respeito. Ora, isso eu não te vou admitir.
Madalena: Já te disse para não seres paternalista comigo, Teresa. Eu não ia adiantar mais nada. Nem iria permitir mais avanços.
Clara: Desculpe, mãe. Eu não queria invadir a sua intimidade. A única coisa que eu quero perceber é a razão pela qual a Madalena a faz sofrer tanto.
Virou-se para Madalena.
Clara: É por isso que não gosto de si. Graças a si eu e a minha mãe passámos um inferno dentro desta casa. Quase nos perdemos uma à outra. E depois, quando a minha mãe se recuperou, a Madalena disse-lhe que já não a queria. E ela voltou a sofrer enormemente.
Teresa: Clara, estás a ser injusta com a Madalena.
Joana: Sim, Clara. A culpa do inferno por que passaram aqui as duas não é da responsabilidade da Madalena.
Teresa: Eu expliquei-te tudo quando conversámos. A culpa foi minha. Eu deixei a Madalena há vinte anos por ser homofóbica. Nunca a procurei durante esse tempo por ser homofóbica. Repudiei a tua relação com a Joana por ser homofóbica. Quando resolvi contar-te tudo, falei antes com a Madalena, que me aconselhou a não dizer nada naquele momento para não estragar a tua relação com a Joana. Mesmo assim, eu resolvi abrir o jogo todo. E foi isso que nos fraturou. Demorámos um mês a recuperar. E depois disso, foi possível falarmos. Lembra-te que, nessa altura, me mandaste ir falar com a Madalena. Numa altura em que eu temia que ela já não me quisesse mais por causa do tempo que estive sem a atender. Sem lhe dar uma palavra de satisfação. Foste tu. Para que vem agora dizer que não gostas dela?
Clara: Não gosto dela porque a mãe sofre por causa dela. Ela não a quis de volta. E eu vi a mãe chorar. E a mãe não chora sem um motivo grande. Agora, chego aqui a casa e a Madalena está cá consigo. E eu pergunto o que aconteceu? Já a quer de novo ou está só a alimentar-se de si?
Madalena: Talvez os pais da Joana também não gostassem muito de si se soubessem que abandonou a Joana num momento de exaltação e que a deixou um mês à espera de explicações sem a promessa de as vir a dar.
Joana: Os meus pais sabem. Eu contei-lhes quando fui doente para o Porto. De facto, estão preocupados comigo. Têm medo que eu sofra mais. É normal. Há-de passar-lhes. Sobretudo quando se aperceberem que eu sou feliz com ela.
Teresa: Perdão, Joana.
Madalena: Perdão Joana, está muito bem. Mas e onde está o pedido de perdão para a Madalena? Para mim. Eu que voltei de Coimbra em paz. Que não procurei ninguém. Que aceitei conversar. Que cedi no amor. Que perdoei no tempo. Que apostei de novo. Que me desiludi outra vez. Que voltei a tentar. E que, por fim, porque a Teresa resolveu fazer tudo à maneira dela, fiquei um mês sem descortinar como haveria de sobreviver. Porque para mim, ela tinha partido de vez. Mais uma vez.
Joana: E tu, Clara? Faz-me impressão que, mesmo apesar de tudo o que estavas a passar, não tenhas tido saudades, desejos…
Madalena: Sim. Isso, Teresa. Não sentiste nada? Como foi possível conceberes o fim de tudo?
Joana: Pois. Como foste capaz de aceitar o nosso fim?
Clara: Não estejas a meter tudo no mesmo saco, Joana. São situações diferentes.
Madalena: São situações idênticas. Sendo que a minha e a da Teresa é muito pior porque nós temos um passado funesto. Tudo se torna muito mais difícil de recuperar.
Teresa: Filha, somos duas sociopatas.
Madalena: Acho muito bem que brinques, Teresa. Porque o ambiente está realmente para o pesado. Mas é verdade que ambas demonstraram desinteresse pelos sentimentos de cada uma de nós.
Clara: Elas têm razão, mãe.
Teresa: Sim, Clara. Mas em que condições iriamos ter com elas? Se nós fizemos o mesmo uma à outra. Madalena, nós desistimos de tudo. Inclusivamente deixámos a nossa própria relação de mãe e filha à deriva. Entrámos ambas num estado depresso. E só voltámos a falar porque num certo dia demos conta que o tempo já tinha operado sobre as coisas. Como só o tempo o sabe fazer.