AZUL - Cap LXXV
Cat2007
26.10.16
Permaneceram na sala pequena por ser mais acolhedora. Há muito que tinham terminado o café. E pouco tinham dito uma à outra, para além de algumas frases próprias das conversas vagas. Teresa levantara-se ainda agora para pôr a tocar Maria João Pires. Decidiu colocar os Preludes de Chopin. A tristura e a obstinação da música refletiam o seu próprio estado de espírito. Por isso a escolheu. Era como se estivesse decidida a subir os degraus da incomensurável escadaria de um templo preexcelente. Ficou de pé virada para Madalena.
Teresa: Apetece-me fumar um cigarro.
Virou-lhe as costas e deu dois passos em direção a uma antiga consola de sala.
Madalena: Há quanto tempo não fumas? Fumávamos quando éramos mais novas.
Teresa: Fumo sempre que me apetece. Mas nunca me apetece. Exceto em determinadas situações. Apetece-me agora.
Madalena: Durante aquele mês em que não nos vimos fumaste?
Teresa: Sim. Em momentos pontuais.
Madalena: Eu também. Mas em quase todos os momentos.
Teresa: Mas tu não fumas, Madalena.
Madalena: Não desde que fui para Coimbra. Mas fumei naqueles dias. Muito.
Teresa abriu uma pequena gaveta da consola e retirou lá de dentro um maço de SG Gigante e um isqueiro de metal.
Teresa: E agora, apetece-te um cigarro?
Madalena: Sim, por favor.
Madalena ficou de pé também.
Teresa colocou dois cigarros ao mesmo tempo nos lábios e acendeu-os de uma vez só. Deu um a Madalena.
Teresa: Este jantar foi uma baralha. Mas resultou. Pelo menos para as miúdas.
Madalena: Para nós também resultou. Levou-nos até ao ponto certo, ao spot, da nossa discórdia.
Teresa: E onde é esse ponto?
Madalena: Fica onde não conseguimos sair desde sempre. Há uma altura em que tu me deixas e nada explicas e eu fico extinguida. Aconteceu há vinte anos. E sucedeu agora. Claro que agora não foi tão grave. Tenho outra maturidade e um poder de encaixe diferente. Também não demoraste vinte anos a voltar.
Teresa: Então porque não te esfoças para me entender? A minha vida tinha desabado. Tu sabes. Desta vez eu não te quis deixar. Não tinha essa intenção.
Madalena: Não tinhas quando saíste lá de casa depois de uma noite inteira a fazer amor comigo. Até te despediste de mim feliz. Mas depois, no meio da crise, largaste-me. Nem sequer me atendeste mais o telefone. Nem reparaste, sequer, quando eu deixei de ligar.
Teresa: Mas eu voltei, não voltei?
Madalena: Mas podes desaparecer de novo, não podes?
Teresa: Creio que não. Porque haveria de desaparecer?
Madalena: Não sei. Acontecem coisas graves na vida de uma pessoa. Sempre que te acontecer alguma coisa grave, tu vais desaparecer. E voltar. Pois se voltaste ao fim de vinte anos. Diz-me lá porque voltaste tu agora, se me tinhas deixado para trás?
Teresa: Madalena, nós passámos esta manhã e a tarde a fazer amor. Não sentiste porque voltei?
Madalena: Tesão?
Teresa: Também, muito, querida. Mas não só. Tu sabes.
Madalena: Mas que tipo de amor é aquele em que as pessoas não partilham os maus momentos?
Teresa: Há coisas que temos que resolver por nós.
Madalena: Há coisas que não se enquadram quando se fala de amor.
Teresa: A Joana perdoou à Clara.
Madalena: Mas a Clara deu uma boa explicação. E toda a gente percebeu. Agora, tu só sabes dizer que a tua vida desabou. É pouco para deixar de parte a mulher que se ama. Devias querer-me a teu lado nesses momentos. E não desistir de mim. É isto que eu não engulo.
Teresa: Talvez eu tenha estado demasiado tempo sozinha.
Madalena: Isso não é desculpa.
Teresa: Foi a Clara que me encorajou a telefonar-te.
Madalena: Olha, Teresa, tu não piores as coisas. Quer dizer que, se não fosse a miúda, nem sequer voltavas?
Teresa: Não. Quer dizer que, naquele momento, não estava de todo ciente do que se estava a passar.
Madalena: E em algum momento pensaste no que eu poderia estar a sentir?
Teresa: Pensei que sofrias muito e que não me voltarias a aceitar. Quando pude conceber isto, a minha vida, que entrara em derrocada por causa da minha filha, afundou completamente por tua causa. Fiquei débil. Muito débil. Tanto, que não aguentei mais e meti férias.
Madalena: Tu. Tu. E mais tu. O que pensaste. O que sentiste. Sempre acima do que eu pensei. Do que eu senti. Parece que não tens senso do que é justo e devido. Tu é que foste a causadora da crise tremenda que se abateu sobre ti e a tua filha. Era muito justo que pagasses por isso. Não eu. Eu devia estar ao teu lado a lamber-te as feridas.
Madalena suspirou de impaciência. Abriu os braços num movimento amplo dirigido a Teresa.
Madalena: Teresa, eu não percebo como foste capaz de me deixar outra vez. E enquanto tu não me explicares bem esse processo, não vamos sair do spot.
Teresa: Querida, eu tenho uma boa explicação, acredita. Apenas não estou a conseguir articulá-la. Ainda estou um bocadinho baralhada. Também, tu, com esses braços abertos assim para mim, não estás a permitir que eu me concentre muito.
Madalena: O que têm os braços abertos?
Teresa: Parece que me estás a chamar.
Acendeu outro cigarro.
Madalena: Deves estar a brincar comigo.