Vou contar uma pequena estória que serve apenas para dizer o seguinte: há recalcamentos que nos tomam porque em estado infantil não compreendemos a frustração que se apodera de grande parte dos adultos e que, por consequência, marca negativamente as relações sociais dos vários tipos.
Quando era pequena cometi, entre muitas, duas pequeninas asneiras que gostaria agora de salientar. A primeira foi atirar com uma lata de lama para cima do vestido imaculadamente branco de uma menina que estava para ali ao pé de mim. A segunda foi ter levado uns bonecos em PVC dos desenhos animados de aventuras da casa de outra menina para a minha.
É de salientar que ambas as meninas não gostavam de andar de calças ou de calções e que tinham como preferência para as brincadeiras os tachos e as panelas em miniatura, bem como as bonecas.
Ora, começando pelas bonecas, estas, dada a rigidez, sempre me pareceram representações de pessoas acabadas de morrer (e que, portanto, ainda têm cores no rosto e nas vestes), sendo certo que os tachos e as panelas pequeninos em plástico apareciam-me também como verdadeiras inutilidades porque, afinal, nem sequer dava para estrelar um ovo a sério.
O que eu gostava realmente era de jogar à bola e subir árvores, entre outras atividades similares. E, na televisão, fixava-me em reproduções onde estivesse presente a aventura, o humor ou a pancadaria (v.g. os looney tunes).
A verdade é que, à vez, de acordo com o tempo de cada acontecimento, as mães das meninas “minhas“ vítimas, foram falar com a minha mãe, para, pensei eu, vitimizar ainda mais as ditas. Usaram, pois, discursos semihistéricos, cujo objetivo principal parecia ser, na verdade, diabolizar-me. Com efeito, quer uma quer outra aproveitaram os pretextos que as levaram ali para criticar quase tudo o que eu fazia.
O facto é que a minha mãe adotou uma atitude complacente perante estas mulheres, maneando a cabeça em sinal de assentimento ao que elas iam dizendo, procurando assim evitar conflitos inúteis. E tudo porque a mãe bem sabia que as críticas iam direitinhas para ela. Porque, enfim, a culpa é sempre da mãe.
O que realmente lhe estavam a dizer aquelas duas, percebo eu hoje, é que as mulheres, especialmente as mães, não deviam trabalhar fora de casa porque o seu papel na sociedade se esgota nas atenções da mais diversas espécies que têm que votar aos maridos e aos filhos. Uma mulher trabalhadora é uma mãe desleixada. Ponto final.
Estiveram, portanto, a chamar desleixada à minha mãe através de mim. No entanto, quando cada mulher saiu no seu dia de lá entrar, das duas vezes, a mãe fechou a porta e sorriu-me imediatamente. E, no que toca aos bonecos, disse-me ainda que eram muito giros, pelo que me compreendia.