Como em quase tudo, lucidez, generosidade, equilíbrio, e sorte são as palavras-chave.
Lucidez porque não basta a grande ajuda dada pelo instintivo amor mãe-filho/pai-filho. Na maior parte dos casos, é um amor sem reservas. Mas, também, na maior parte das situações, é um sentimento desordenado. O instinto de preservação da espécie que nos leva a desejar procriar. Se, por um lado, impulsiona o afecto visceral pela cria, por outro, tende a confundir a imaginação, provocando delírios de identidade espiritual com a pequena criatura. E culmina em projecções do ego dos pais sobre a identidade dos filhos. Dentro deste circunstancialismo, em princípio, o amor paternal desconhece o sentido da palavra liberdade. A lucidez está em admitir que ali está uma pessoa. Mesmo que seja uma pessoa muito pequenina, que não ande, não fale e não se saiba alimentar. Que não merece, por isso, muito respeito.
Mas pior do que isto, e trato agora da generosidade, é, ainda, o efeito tapa-buracos dos afectos. Buracos nos espíritos paternos e o amor pelos filhos a funcionar como uma espécie de massa de cimento milagrosa do espírito emocionalmente coxo dos pais. E aqui entra a generosidade que muitas pessoas não têm. Sobretudo as emocionalmente torcidas. Enfim, mas emocionalmente torcidos somos todos nós, porém, sem dúvida uns mais do que outros. Outros que vêm nos filhos o reflexo do seu ego ou/e os que os confudem com estradas ou caminhos por onde pensam que corre o sentido da sua própria vida, que há muito não tem sentido próprio nenhum.
Em termos práticos, e quanto a este assunto, o equilíbrio é quase o mesmo que a generosidade. Aceitar o outro. Mesmo que o outro seja um filho. É tremendamente difícil por causa da identidade genética, do poder e do ego. É uma prova tremenda e um passo crucial no processo de crescimento de cada ser humano. Daí que a decisão de procriar tenha de ser uma decisão. Não uma obrigação. Não uma decorrência natural. Quem não pode, não tem. Até poder. Se puder. Equilíbrio.
Há crianças que são agredidas. Há crianças que são violadas. Há crianças que são assassinadas. Há crianças que passam fome. Há crianças que estão sós. Há crianças que têm medo. Há crianças que choram. Há crianças felizes. Todas as crianças não percebem. Nada disto. Cada criança tem um mundo particular de alegrias, terrores, fome e sono onde o meio termo parece não existir. E as emoções alternam-se ciclicamente. Há crianças com sorte. Há crianças sem sorte nenhuma. Há crianças. Todas as crianças somos nós.