Uma pessoa pensa em sol, praia e bossa nova e só quer apresentar a demissão. Ontem fiquei até demasiado tarde a ver a “Coisa mais linda”. Por algum tempo, esqueci o meu compromisso com o gabinete e os papéis. Valeu ter dormido tão pouco. Mesmo que agora tenha de sambar.
Há experiências na vida que são perfeitamente desnecessárias. Lembro-me de ser bastante pequena quando o meu irmão, dois anos mais pequeno, partiu um braço. Como eu adorava acompanhar o meu pai para todo o lado, solicitei-lhe em prantos que me levasse também para o hospital. Durante o tempo de espera, experimentei a (péssima) energia própria do estabelecimento. Trazida pelas diferentes pessoas que iam girando para trás e para a frente. Umas doentes e outras com cara disso, apesar de estas últimas serem cuidadores ou prestadores de cuidados de saúde. Também achei que vi passar pessoas mortas. Porque estavam, de olhos fechados, deitadas em macas. Enfim, o que vi talvez não correspondesse exatamente à realidade. No entanto, a energia... Como se sabe, as crianças, mesmo que, para ver a vida, usem lentes de aumentar ou diminuir, são muito sensíveis à energia das outras pessoas. Muito mais do que os adultos. No fundo, as crianças são como os cães – por exemplo, ao meu cão sucede não gostar de certas pessoas e simpatizar com outras sem motivo aparente. Portanto, a energia era, de facto, péssima. E esta impressão atingiu-me de tal forma, que andei por alguns dos anos seguintes da minha vida a tentar evitar sequer passar ao pé de estabelecimentos do género. Dito isto, repito, então, que há experiências na vida que são perfeitamente desnecessárias.
A experiência é fundamental para se perceber bem de que forma são as coisas da vida. E isto sem ser necessário experienciar tudo. O que também não seria possível. As coisas são por grupos. Por temas, melhor dizendo. A amizade, por exemplo, é reconhecidamente um tema.
Quando era pequena, e até ao fim da adolescência, pensava que todos os meus amigos eram meus amigos. Depois percebi que só alguns amigos é que eram meus amigos. Até que finalmente conclui que há amigos verdadeiros que deixam de o ser porque acaba o querer baseado na visão a dois, que cedeu. E, a final, ficam os verdadeiros amigos. Acredito que cada pessoa tem para si um destes. De outro modo, lamento muito.
Imagino que tenho um ar sensível e compreensivo. Digo isto porque as pessoas em geral me procuram para ajudar. Vejamos: querem sobretudo contar episódios da sua vida privada, tendo obviamente em vista “despejar o saco”. Com mais ou menos vergonha. E eu não me lembro de nenhum caso em que, tendo produzido uma opinião, a mesma fosse ouvida. Quem diz uma opinião refere-se a um conselho. As pessoas não vêm desabafar para ouvir conselhos. As pessoas não vêm desabafar para ouvir, ponto.
No outro dia ofereci o meu café ainda intocado a uma senhora que, infelizmente, não era boa da cabeça. É que ela foi explicando que todos os dias ia à ginástica ali mesmo ao lado, mas nunca bebia café. Achei, então, que era uma boa razão para beber o meu. Depois pensei em arranjar um outro para mim. E depois, por fim, esqueci-me.
O tempo está instável como eu já fui. Muitas vezes, a minha mãe dizia que se ia embora de casa. Hoje percebo que era coisa que lhe saia pela boca quando estava enervada com o meu pai. O que igualmente sucedia muitas vezes. Chegava mesmo ao ponto de se ausentar, de vez em quando, para casa da irmã mais velha. Depois voltava, como sempre.
A questão é que eu era um bocado pequena demais para não encarar com a máxima seriedade aquelas declarações e atos. Para mim, a minha mãe fazia essas coisas quando estava, por alguma razão, farta. Porque, veja-se, as discussões nem sempre começavam por causa dele.
Bem, e, assim, logo que comecei a namorar mais a sério, passei a vivenciar coisas parecidas. Não iguais. Parecidas. Sem desconfiar que estava a mimetizar, começou a estabelecer-se em mim um padrão de comportamento específico: o meu saco começava a encher lentamente quando as vivências, ainda que prazerosas, eram demasiado intensas. Depois, quando o meu saco já estava a meio, eu, por causa disso, por estar a meio, principiava a sentir uma espécie de impaciência. Por fim, tinha que me afastar. Durante um dia ou dois. Mas tinha que me afastar. Quando já não sentia o ar a entrar, a fluir e a sair dos pulmões com a mesma fluidez e leveza. O corte poderia surgir de uma discussão. Normalmente, era assim. Mas se a discussão não surgia, eu pirava-me da mesma maneira. Para voltar. Claro que me lixei seriamente com isto. Uma vez ou outra. Sofri.
Hoje sou estável como o tempo quando está desse modo.