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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

INENARRÁVEL*


Tita

08.01.11

meu amor 
"Ai, vestidos detesto" disse numa voz grave, seca, invasiva e envolvente enquanto ajeitava o vestido vermelho no peito. Eu estava mesmo a ver que aquilo era verdade. Ela queria lá saber de estar parecida com a Lauren Bacall, era-lhe indiferente. Só não lhe caía a cinza do cigarro no vestido porque ali era proibido fumar. Pensava eu que a atitude Bukovsky era exclusiva de um homem. Não, aquilo era uma mulher viscontiana com bocas de norte-americano entediado e cínico da vida em versão tipa, convenientemente simpática. A imagem é pretensiosa e corresponde à mais pura verdade. "ai, vestidos detesto" e vesti-los seria um favor que nos fazia, ridículo para ela.
 
O fotógrafo iria ter de disparar umas 700 vezes para poder aproveitar uma só pose. A fotografia era necessária caso contrário estaria fora de questão que ela "não nasceu para aquilo" como dizia, já vencida pelo tédio. Ela não tinha nascido para aquilo e no entanto fazia aquilo como ninguém. Fingia que posava, era loira, tinha um cabelo forte com um penteado naturalmente romântico e o vestido, de corte difícil para tantas outras, favorecia-a em todas as direções e sentidos. Eu passei a tarde à volta dela com o telemóvel na opção câmera. Tentava gravar-lhe a imagem à falta de melhor. Estava mais gente e não me atrevi a chegar-lhe muito perto. Enquanto olhava para ela ía sentindo uma comoção física e pensava "meu deus é isto que deve acontecer aos homens quando olham para uma mulher particularmente bonita.". Se ela soubesse o que me passava pela cabeça dir-me-ía "epá isso é de fufa para baixo" e eu nas tintas, como se isso fosse relevante perante a sua beleza, não era. 
 
Durante a hora da sessão fotográfica, foi-se desmultiplicando em absurdos. Do alto de 12 centímetros de salto e com a segurança de um metro e oitenta e dois, disse que se sentia num equilíbrio instável como se fosse o Sudão em vésperas de referendo. Mas a quem ela queria impressionar se ninguém sequer sabia ao certo o que era o Sudão? Não queria impressionar ninguém, apenas usufruir do direito ao absurdo para se poder ouvir a si própria. Fartou-se de me perguntar pequenas coisas mas começou a custar-me perceber o sentido do que dizia. Estava bonita e bloqueou-me parte do cérebro, a parte da reflexão.
 
Consegui ficar única e exclusivamente instintiva, básica. Pensava que só acontecia aos homens. Se ela soubesse disto dir-me ía "epá que ceninha lésbica, só lhe falta afagar uma gata". A sessão fotográfica era uma chatice obrigatória porque andava com a ideia, fantasiazinha mais que provável, de entrar para uma espécie de Mossad e começar a passear-se sob disfarce. Era um treino para uma outra vida que decidiu que ía ter, repentinamente. Era-lhe indiferente se mais depressa se comovia com tudo o que era contrário aos israelitas mesmo que o contrário tresandasse a israelita também. Era feita de apetites e assomada, com frequência, por crises de sensatez. Dava-se ao luxo de ser uma contradição quando quase ninguém olhava para ela. No resto do tempo continuava a ser uma mulher bonita, demasiado banal para ser verdade. Cumpria à risca o que havia para cumprir, social e profissionalmente. Era uma mulher obediente ao sistema por vontade própria. Era parecida com a Lauren Bacall.
 
Cheguei a confessar-lhe um began mas estava sem muito tempo para argumentar. Mandei-lhe um piropo mais sofisticado para não me confundir com um tipo das obras. Olhei para o relógio e vi que não ía com o cão à rua há um par de horas. Despedi-me e inventei-lhe uma treta de uma viagem qualquer, o Sudão se lhe apetecesse, ela que me imaginasse no Sudão a perder o equilíbrio. Inesquecível, era uma mulher para casar.
 
*Este texto foi escrito por Niamey

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