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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

(NÃO) VOU FALAR DA MORTE DO CARLOS CASTRO


Tita

15.01.11

 

 

Há uma certa snobeira em mim. Não queria dizer nada sobre o caso Carlos Castro porque toda a gente anda a falar no assunto. Não sou jornalista. Não tenho obrigação. Não sou bisbilhoteira. Não tenho vocação. Queria passar ao lado do acontecimento da morte do Carlos Castro como passo ao lado de um acidente na estrada sem olhar.

 

Detesto as pessoas que ficam a olhar. As filas gigantescas que se criam por causa da curiosidade pequenina. Assistir aos pequenos dramas ou às grandes tragédias da vida dos outros. Só para sentir a satisfação. “Isto não é nada comigo”. Reduzir a dimensão dos problemas próprios. “Tenho de pagar o cartão de crédito, mas pelo menos o meu carro que ainda estou a pagar está inteiro”. Formam-se filas gigantescas quando acontece uma batida que só parte faróis e pára-choques.

 

E o tamanho da fila não é maior se sucede haver mortos e feridos. A fila aumenta na medida em que haja mais ou menos detalhes para observar. Só por isto. As coisas têm a mesma dimensão para as pessoas que ficam a olhar. Estão a olhar para si próprias. É por isso que nunca pensam se devem parar para ajudar. Normalmente não é preciso. Mas mesmo que fosse, não pensariam. Ficar a olhar é humilhar silenciosamente.

 

Sempre que tenho que ajudar, paro. E ajudo. Quando não precisam de mim, piro-me o mais depressa possível para desimpedir a estrada. E nunca olho porque não quero contribuir para a humilhação.

 

Este olhar geral para a morte de Carlos Castro a que se assiste tem este lado. A humilhação. Por mim, estava a ver se me livrava desta fila. Queria passar pelo local do acidente o mais depressa possível. Para me pirar. E ir à minha vida.

 

Só que isto não há meio. O trânsito está completamente parado. Há tanto tempo que já tive tempo de me lembrar que estive encarcerada dentro de um carro mais de três horas. Porque a estrada era apertada e havia muitos detalhes para anotar. Assim, os curiosos estenderam-se por mais de 30 km. As ambulâncias não conseguiam passar. Alguém morreu dentro do meu carro por falta de assistência pronta. Enquanto esperava fui visitada pela janela. Era um casal que queria que eu explicasse como foi o acidente. Fazia sentido porque quem conduzia era eu. O banco estava a tentar esmagar-me contra o volante. Só podia mexer a cabeça. Não respirava bem, pelo que não podia falar. Só pude dizer para desimpedirem a janela porque precisava do ar que entrava por ali. Saíram ressentidos. E fizeram questão de me manifestar isso. Não me lembro exactamente do que disseram. Mas disseram.

 

Já ouvi música. Já praguejei. Já olhei para as coisas lá fora. Já sai do carro para esticar as pernas. Já não sei o que fazer mais. Dou por mim a falar para o lado. Começo a pensar no que terá acontecido. Pergunto a opinião a quem sabe tanto como eu. Já quero saber o que se passa. Estou encarcerada de uma maneira diferente. Não há saída. Vou começar a desenvolver raciocínios sobre o acidente.

 

A ideia que tenho do Carlos Castro é vaga. E não me vou documentar agora. Não posso. Como disse, estou parada no trânsito sem hipótese de fuga. “Isso já não está na moda”. Se não foi isto que ele disse num programa de mulheres da Rádio Comercial onda média há mil anos atrás, foi mesmo isto que ele disse por outras palavras. E o tom era de vomitar.

 

Foi uma agressão directa dirigida a uma das vozes do programa. Assim. Do sítio mais alto possível do mais baixo nível que há. E ficou impune. Depois, houve até um movimento da agredida para lhe pedir desculpa. O jogo virou. Carlos Castro estava ofendido com uma camisola qualquer. A culpa era dela. Foi por isso que a agrediu. Legítima defesa.

 

Confundi-me toda por momentos. Mas acabei por não me deixar levar. O meu cérebro de pessoa pequena reteve o improvável. Estava ali a falar na rádio um homem sem educação e sem delicadeza.

 

Verifiquei ainda que Carlos Castro também tinha uma forma de falar estranha. Mesmo que não estivesse a agredir ninguém directamente. Era um modo de falar diferente. Pouco parecido com o dos homens. Talvez algumas mulheres falassem assim. Mas eu não conhecia nenhuma. Percebi mal na altura esta questão, tendo concluído que talvez lhe tivesse acontecido alguma coisa muito má na vida. Um acidente que o deixou com afectações na fala. Daí que talvez se pudesse desculpar aquele tempero venenoso no discurso que fazia. Saias, blusas, vestidos, costureiros e costureiras. Estas coisas tinham vida para Carlos Castro. Havia veneno por causa disso. Foi o que percebi.

 

Não gostei dele. Fico sempre curiosa com as coisas de que gosto muito ou de que não gosto nada. Causam-me o impulso da reflexão. Não andei à procura dele, mas sempre que aparecia ficava atenta. Só para ver. Júri de concursos televisivos sobre talentos deprimentes e inócuos. Autor da Daniela ou Daniella, sei lá. Promotor de eventos públicos de travestis. Foi o que o vi fazer na vida. Se há mais não sei. Ouvi dizer que tinha poderes para destruir e construir carreiras artísticas sem qualquer critério válido. Por capricho. Porque sim. Porque havia algumas coisas que o entusiasmavam. E outras que detestava.

 

Poucas vezes vi Carlos Castro a dizer bem de alguma coisa. Aliás só uma vez. Estava emocionado com o nonolita. Uma música italiana referenciada em sítios que ninguém quer saber. Um candidato a cantor impossível interpretou a coisa num programa do João Baião à tarde. No júri, Carlos Castro falou e quase chora. Desde aí passei a evitar as manifestações deste homem. Na rádio. Na televisão. Nas revistas. Quadro completo. Mal-educado. Indelicado. Intriguista. Inculto. Sentimental. Chega.

 

Agora Carlos Castro morre em New York town. Não me apetecia dizer nada sobre isto, como disse. E não vou mesmo dizer. Na verdade, morreu. Mais, morreu assassinado. Mais, o assassinato foi praticado de uma forma incompreensível. A cada mais, tudo se torna pior. Mais doloroso.

 

Para os efeitos do significado da morte e do acto de matar, Carlos e Seabra são duas pessoas anónimas. Ou seja, são muito mais do que figuras conhecidas. Um morre e outro mata. A morte de um ser humano é uma tragédia. Só não dói a quem está a olhar e a pensar apenas em si próprio.

 

Para mim vale a pena guardar essencialmente um respeito sentido pelo valor da vida em si. E pela de Carlos Castro homem, em particular. Também pela dor de quem sinceramente sente a falta do homem morto.

 

No mais, não restarão muitas dúvidas que Seabra tem uma psicopatia. De certo modo, também é um ser humano morto. Sinto por ele. Por causa disso. No entanto, tenho de impor limites a este meu sentimento de piedade. Este homem é um assassino.

  

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