Não sei se toda a gente precisa de referências na vida. Assim para se guiar. Coisas de que se vá lembrando de vez em quando. Quando de quando em vez dá por si parado. A reflectir. Eu preciso de guias de reflexão. Actualmente, e desde há uns anos, que tenho duas referências fundamentais. Duas pessoas que não são pessoas, são um conjunto precioso de valores morais e éticos, de inteligência e de capacidade de sobreviver, de conhecer a dor e de perceber o que significa a felicidade. Duas pessoas que são pessoas. Pois são. Dois seres humanos muito diferentes um do outro. Porém unidos dentro de mim por uma caracterisitca comum. Uma invulgar capacidade de ser humanitário.
Falo do António Victorino d'Almeida. De um amigo. De quem não vou falar agora. Ficará para depois. É um sobredotado. Não é fácil falar duma complexidade destas, tendo em conta a simplicidade com que aparece. Igualmente, o tema que agora me motiva não está directamente relacionado com as referências que este homem personifica.
A outra é uma mulher. Chama-se Lúcia Esaguy Simões. Uma senhora! Não é uma amiga no sentido comum do termo. Mas há um laço de apreço profundo que me liga a ela. Talvez para sempre. Foi uma sorte termo-nos cruzado um dia na vida. E ainda no outro dia nos encontrámos. Sempre que isto acontece, acontece algo dentro de mim que me deixa comovida. Creio que é a admiração. Podemos comover-nos até às lágrimas quando admiramos uma pessoa. Porque há um nível de admiração que roça o amor.
Na primeira vez que a vi recebi um impacto que silenciou tudo dentro de mim. E me obrigou a olhar para ela. Só para ela. Bastou entrar. Ia falar. E mal começou, emergiu o puro poder. Aquele que não é solicitado. Aquele que não é concedido por terceiros. O poder que existe dentro do ser que foi capaz de o inventar e de o exercer sem pedir ou perguntar nada a ninguém. É um poder muito poderoso porque é interior, como disse. Porque vem do ser. Um poder assim está coberto de humanidade e por isso é bom. Perante ela foi possível desmascarar imediatamente um enorme conjunto de gente mesquinha. Creio que é fácil perceber porquê. Os que são apenas fracos também não conseguem conviver com ela. Com a Esaguy. Todos têm medo. Os mesquinhos e os fracos. E nem sabem bem de quê.
Certo dia, em conversa demorada confessou-me várias coisas e fez duas declarações em português abrasileirado. Foram muitos anos a viver lá. "Você muda, sim. Quando você precisa" e "Sempre encarei as dificuldades como oportunidades".
"Mas uma pessoa não muda aquilo que dentro de si é estrutural". Debatia-me eu. E ela: "Mas é disso mesmo que eu estou a falar. Da mudança interior. Na alteração da sua estrutura. Se Você precisa, você muda". O meu cérebro ficou vazio de todas as ideias. Tinha que ouvir a história. Compreendi que ilustrava a experiência que a obrigou a mudar estruturalmente num aspecto da sua estrutura. Algo que não estava bem integrado em face das circunstâncias com que a vida a confrontou. "Se você não muda, você morre.". Ela mudou. Pediu ajuda especializada. Fez um esforço alucinante. E mudou. Com esta mudança, primeiro, sobreviveu e, por fim, venceu.
"Mas existem determinadas dificuldades que podem ser insuperáveis". Continuava eu. Já não me debatia. Estava só a dar o mote. "Nenhuma dificuldade da vida, e não da morte, é insuperável. O que está à sua frente é um desafio à sua capacidade de superação. Você tem que vencer esse desafio porque, no final, você se transforma numa pessoa muito mais capaz". Abri muito os olhos para ver com detalhe um capítulo de vida que me ia ser apresentado. O filme rodou.
No fim, relaxei o meu peso sobre a cadeira. Estava contraditoriamente esmagada e viva. Quase tão morta, que pude ver uma luz incomum. Que me apelava em direcção a um estado de tranquilidade de que eu jamais ouvira falar. Deixei-a com as minhas mãos carregadas de instrumentos de trabalho para a vida. Que não pesavam. Sem querer, aquela senhora obrigou-me a rever muita matéria dada, mas mal apreendida. Conscencializei-me logo ali.
Porém, nada na minha vida tem efeitos imediatos. Não sei se é por estupidez pura. Pode ser apenas porque sou lenta a agir. Antes de mais nada, tenho que pensar, pensar, pensar... Trouxe nas mãos um segredo. Não o usei até chegar à beira do abismo. E foi neste lugar que ouvi de novo. "Você muda porque precisa". Toquei os meus olhos encharcados. Apertei as minhas mãos feridas e sujas. Meti os dedos dentro dos buracos das calças nos joelhos. Senti o ardor da carne dilacerada pelos dentes que imaginei que a solidão tinha. Mudei! Na estrutura. Mudei! Agarrei-me à camisa branca da dor para a sujar e ser levada no seu embalo. Para me dar a oportunidade de ser, primeiro, uma pessoa mais capaz e, depois, um ser humano capaz.
Ando até hoje a tentar adaptar a minha capacidade de sofrimento. Quando sinto que estou a perder-me de mim, olho. "Estou a precisar de mudar alguma coisa séria?", pergunto-me. "Isto é alguma oportunidade, dada a dimensão das dificuldades", questiono o silêncio exterior a mim. E faço sempre alguma coisa. Mas ainda não estou boa nisto, confesso. Embora me encontre muito melhor, admito.
Sei muito bem porque a reconheci imediatamente. Àquela senhora. Eu entendo bem porque entendi todos os detalhes das histórias que me contou. Na verdade, contou-me a história da sua vida. Não me escapou a nuance mais densa. Sem arrogância digo que também tenho o poder de inventar o poder. Porém, o meu poder ainda me consome. Parece que não gosto dele. Obriga-me a lutar. E eu que tantas vezes só quero fechar os olhos e dormir. Na cama. Como se estivesse no útero.
É esta armadilha chamada carência afectiva que me afasta do senso de mim desde que me conheço. A grande diferença, é que esta espécie de alucinação já não caminha nas minhas costas. Eu virava-lhe sempre as costas para fingir que ela não existia. Hoje procuro olhá-la permanentemente nos olhos. Para a repelir. Na maior parte das vezes, consigo. Mas há momentos em que não. A carência volta a acertar o passo nas minhas costas.
Ainda muito recentemente vivi um desses momentos. Horas de inventar personalidades maravilhosas em corpos atraentes. Quando nem sequer sei ao certo um nome. Quando nem reparo bem num corpo. Mas eu mudei! Já há algum tempo que mudei, como disse. Peguei na carência pelo colarinhos e arrastei-a para a minha frente. Olhei-a bem de frente. Nos olhos. E empurrei-a para o chão. Virei-lhe as costas já indignada. Ficou lá estendida sem se atrever a seguir-me.
Na verdade, não importa o que os outros querem, dizem, fazem ou são. Na verdade, o que importa é a nossa própria integridade. A prática constante daquilo que verdadeiramente somos. Se somos. O discurso-referência da Lúcia Esaguy Simões é, em síntese, de integridade. Através do fenómeno do reflexo do espelho, verifico que sou uma mulher integra. Tenho orgulho nisto.
Muito obrigada.