AZUL - Cap III
Cat2007
11.09.16
Naquela casa sempre se trancaram as portas. David tinha esse hábito. Nunca ia para o banho antes de fechar todo o compartimento. Era sempre assim aos sábados depois do pequeno-almoço e do jornal. Levantava-se, fechava a porta e ligava a música. Só aparecia na sala quando já eram horas de almoçar. Explicava-se com a solidão. Um bem essencial da vida de cada ser humano que não se confunde com a inexistência de afetos perdidos. Com esse “estado de indigência emocional” que tragicamente pode suceder aos indivíduos numa ou noutra altura da vida, e a que ele chamava abandono. A sua solidão era um encontro consigo próprio. Um espaço para pensar. Para se revisitar. A única possibilidade de se encontrar individualmente. E de crescer de uma forma útil para si próprio e para o mundo, construindo-se enquanto ser único. Porque a vida é antes de mais nada uma experiência individual. Um percurso que todos fazemos sós. Mesmo que, como desejamos, acompanhados. Na verdade, no convívio entre si, os seres humanos partilham não se fundem. Nestes termos, um dia o almoço arrefeceu. Amélia não se serviu. Ele perdeu os sentidos na banheira e morreu afogado. Ela precisou de ajuda para arrombar a porta do quarto. E finalmente ficou só. Com a criança.
Nesta altura Teresa tinha três anos. Por isso não recorda o que sucedeu. Tão pouco tem a consciência, mas apenas a memória suave das emoções, das incontáveis e repetidas vezes em que ela, a partir daí e durante tantos meses passou a sentá-la nos joelhos à procura. Primeiro os cabelos ondulados. A mãe costumava tocar nos cabelos ligeiramente ondulados da filha, observando-lhes a leveza de algodão e pesando o brilho de seda negra que se evidenciava naquele especial tom de castanho-escuro. Depois apontava as pontas dos dedos à pele do rosto suave de criança até à boca. Uma sombra fina escurecia a linha circundante dos lábios grossos, envolvendo-os como uma espécie de proteção, como uma segunda fronteira. Virava-se por fim para os olhos. Amélia inspirava cada linha, cada foco de luz, cada sombreado, cada detalhe ínfimo daqueles olhos que eram absolutamente únicos. Fotografava-os, pondo-se depois a mirar fervorosamente o retrato. A iris, sem ser escura ou clara, era mais escura do que clara. Era azul-escuro. Como que imune aos raios de sol. Mais poderosa que os raios de sol, segundo quis a imaginação da mãe. Não, afinal a iris não era azul-escuro. “Não, Não.”. O arco perfeito e profundo que a delimitava é que era. Assim como a meia dúzia de espessos raios que a atravessavam. Pontes cruzadas sobre lagos que se imaginavam imensamente profundos. Mas afinal o sol penetrava-os. Da ação do sol não podiam no fim de contas escapar. O sol, presente ou ausente, conferia-lhe a característica da suscetibilidade de se alterarem inadvertidamente. Estranhamente Amélia descansava sempre sobre esta conclusão. Na verdade, a contingência da cor era preferível. Porque conferia àqueles olhos o “poder” de imprimir um corte essencial “com a monotonia”. Afinal Amélia não conhecia nada que, estando marcado por um franco sinal monótono, fosse realmente belo. Como eram os olhos de Teresa. Como era Teresa.
“Muito mais bela do que o pai”. E parecida com ninguém. No entanto, Amélia chorava enquanto o buscava sem nunca o ver naquele rosto infantil. Até que um dia parou. De procurar a companhia de David. Ali e em outros equívocos sinais da vida. Ele estava morto e apenas vivo dentro de si. Restava-lhe a memória. Uma vida de vinte anos em conjunto. O que é muito. Vinte anos a partilhar.