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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

AZUL - Cap LVIII


Tita

12.10.16

Os dias passaram. Formaram semanas. A luz em casa de Amélia tinha fugido. Ninguém passava pela pequena sala de leitura. Que fora o seu quartinho de costura. Os demais sinais dela, espalhados pelos restantes lugares da casa, estavam bem disfarçados. Pelo que não eram percebidos por quem quisesse ignorá-los. O peso das respirações de ambas lograram baixar a energia vital que ela deixara para as proteger. Faltaram também as palavras. A mudez ensurdeceu tudo de tal modo que se ouvia um silêncio estrondoso pelos corredores. Clara dormia mais do que vivia. Teresa trabalhava com a mesma falta de alegria de toda a vida e ainda com mais empenho. Com efeito, o bom ânimo não contava no seu trabalho. Só o ânimo. O segredo estava no cérebro e no corpo. Sempre cheios de energia. O segredo não estava nas coisas que dão vitalidade à alma ou agitam o espírito. Teresa fugiu para lá. Para o trabalho. Mais uma vez. Por sua vez, Clara não podia mexer o corpo. Não ia por isso à faculdade. Dormia muito. Madalena. Teresa não atendia Madalena porque não ouvia o telefone tocar no meio do pesado silêncio que habitava a sua casa. Clara não telefonara a Joana por estar muda. Madalena deixou por fim de ligar a Teresa. Optou por esperar. O que quer que fosse. Joana não tentara falar com Clara uma única vez. Até que a primavera, que já se instalara há algum tempo, decidiu realmente aparecer um dia através dos vidros da janela. Alguém se esqueceu de fechar os estores dos espaços comuns desabitados. Talvez não tenha sido esquecimento. Certamente, pelo contrário, não foi preciso cerrá-los. Porque o céu se mantivera baixo e cinzento muito para além do inverno. Talvez os estores tivessem estado sempre abertos. As portas tinham vidros. E Clara não resistiu aos humores cruéis do sol que a atiraram para fora do quarto. Era dia. Teresa estaria com certeza no escritório. A esquecer-se da vida de acordo com a sua fórmula pessoal. Cada uma tinha o seu modo particular de fazer as coisas. Clara andou pesadamente pelo longo corredor. Soube-lhe bem porque estava escuro ali. As portas das divisões que ela cruzava estavam perfeitamente fechadas. Ao fundo, depois da esquina, outro ponto de luz natural se insinuava, porém. Foi até lá com o objetivo de fechar as janelas da grande sala de estar. Sobre a imagem da mãe, que recorrentemente lhe agitava o cérebro, sentiu-se descansada. Estava certa de que Teresa não estava em casa. De facto, há quase um mês que não se encontravam. “Como? O que está ela aqui a fazer?”. Teresa afinal estava em casa. Era de dia. Cedo da tarde. Teresa estava em casa. Talvez por via da falta de preparação e do tempo que passara, Clara falou-lhe sem querer.

Clara: Que horas são?

Teresa: Três.

Clara: Ah!

Teresa: Meti umas férias. Durante um mês não porei os pés no escritório.

Clara: Sim?

Teresa: Sim.

Clara acordou de vez. Sobretudo por causa dos raios de sol que lhe feriam o cérebro através dos olhos.

Clara: Vai de férias para algum lado?

Uma ponta de vida despontava dentro de si. Um específico raio de sol trespassara-a. A mãe estava mais magra.

Teresa: Vou para junto da minha vida. Seja lá onde for que ela está. Mas primeiro gostava de falar um bocadinho contigo. Se tu o desejares também.

Clara notou a diferença. A ponta de ternura na voz da mãe. Outra ponta de vida a despontar. Mais um específico raio de sol a atingia.

Clara: Sim.

As maçãs do rosto de Teresa ganharam cor. Talvez um específico raio de sol também.

Teresa: Eu não sou muito boa em nada. Eu não sou muito forte. Aliás, eu nem sequer sou rigorosamente inteligente. Eu não sou melhor do que sou. Eu sou o que sou.

Clara sentou-se no sofá onde ela estava sentada. Mas longe. Para não lhe tocar. Porém, no mesmo sofá. Calou-se atentamente.

Teresa: Tenho pena por ti. Tu és tanto que merecias uma mãe melhor do que eu. Muito melhor.

Calou-se. Olhou em volta. Dispersou o olhar sob a brancura do teto.

Teresa: Eu sou um sucesso.

Riu-se.

Teresa: Tenho tudo.

Parou de falar e de rir. Depois riu-se de novo.

Teresa: Sabes que eu sou a advogada mais bonita da sociedade.

Riu-se.

Teresa: Sabes. Sabes também que eu sou a melhor advogada de lá. Sou das sócias mais importantes. E todos, sem exceção, admiram-me e respeitam-me pelo meu trabalho e pela minha conduta privada.

Respirou fundo antes de voltar a rir. E riu-se. Depois voltou à postura séria.

Teresa: Há quem se atreva a dizer ou a pensar que a tua mãe não é uma mulher perfeita? E de ti, a minha filha, alguém se atreve a dizer que tu não és linda, inteligente e bem formada? Ninguém se atreve. Dos outros, nenhum se atreve a dizer que o meu mundo não é perfeito. Dos de cá, todos sabem dos meus handicaps. Tu, a mãe Amélia, a Madalena e a Joana. Eu consegui construir o sucesso da pele para fora. Fiz um produto. No entanto, da pele para dentro, há duas décadas que deixei de ser alguma coisa consistente.

Respirou fundo.

Teresa: Sabes, eu não quis a Madalena. Eu deitei fora a Madalena. Na altura o que me impressionou definitivamente foi a ideia de ter sido apanhada pela minha mãe a fazer amor com ela aqui em casa. Onde hoje é o teu quarto. Era o meu, como sabes. Extraordinariamente, a tua avó nunca me falou desse acontecimento. Nunca. E eu também não abordei o assunto com ela. Fiquei à espera, compreendes. Necessitava que ela dissesse alguma coisa. Para me orientar. Como ela não disse nada, assumi que lhe tinha dado um desgosto muito grande. Na verdade, menti-lhe escandalosamente. Andei, durante dois anos, a esconder-lhe quem eu era. É por isso é desde ai eu odeio a mentira. A mentira pode alterar de vez a vida de uma pessoa. Se eu lhe tivesse contado logo no princípio, talvez ela pudesse compreender. Talvez falasse comigo e me ajudasse. Não sei. Sei que aquela mentira e o silêncio dela me obrigaram a tomar decisões na minha vida. A mudar para ser o que ela gostaria que eu fosse, pensava eu. Sabes, quando ela nos viu, a mim e à Madalena, senti muita vergonha. Os sentimentos que eu tinha pela Madalena, que eram tão especiais e únicos, passaram a ser outra coisa. Feia. Não os pude aceitar mais. Não fui capaz. Por isso, pouco mais tarde engravidei de ti e casei com o teu pai.

Baixou a cabeça. Depois prosseguiu.

Teresa: Fiz tudo isso para fugir da Madalena. Embora, mesmo grávida e casada, eu pudesse voltar atrás. Emendar a mão. Ainda pensei nisso, sabes? E procurei-a na casa dela. Mas ela já não estava cá. Tinha ido para Coimbra estudar. E a ideia de ir atrás dela até lá, com uma criança nos braços, encheu-me de terror. Tinha a certeza que seria rejeitada. Não podia ir. Por isso resolvi convencer-me que ela já me tinha esquecido. Eu era muito imbecil, Clara. Tão imbecil como continuo a ser. Nem considerava a dor da Madalena. Como agora não estou a considerar. Não falo com ela há um mês. Eu só me preocupo com os meus dramas, como vês. Agora com o nosso drama. O meu e o teu. É natural que a vá perder de vez.Mas não posso fazer nada enquanto não te tiver de volta. Nunca esperei é que demorasses tanto tempo a aparecer.

Voltou a respirar.

Teresa: Só muito mais tarde a minha cabeça se permitiu deixar passar a verdade. E a verdade é que a avó nada teve a ver com as opções de vida. Porque ela me disse um dia, ainda o teu pai era vivo, que uma pessoa para ser inteira e íntegra necessita absolutamente de viver em concordância com o que sente e o que sente tem que estar harmonizado com o que pensa e o que diz. Foram mais ou menos assim as palavras dela. Não chegou a ser uma conversa porque nada mais adiantou. Não queria. Porque eu estava casada. Eu é que tinha de decidir a minha vida. A minha mãe era assim. Respeitava-me intensamente. Mas eu não a ouvia corretamente. Ou melhor, entendi perfeitamente onde ela queria chegar. Ela disse-me o que eu tanto desejei ouvir. Mas antes. No entanto, ali, naquele momento, a fraqueza tomou-me por completo. Devia ter-me divorciado porque sou lésbica. Mas não. Eu, antes pelo contrário, resolvi manter-me casada e respeitável.

Teresa falava com os olhos pregados nas mãos, que ia apertando uma na outra. De vez em quando, levantava a cabeça pra ver a filha.

Teresa: Quando tu já tinhas para ai uns dez anos, pensei contar-te que gostava de mulheres. Mas já tinha perdido a Madalena há muito. E não queria mais ninguém. Estava decidida a não ter mais mulher nenhuma. De que serviria contar-te, então? Foi mais fácil prosseguir a vida assim como estava. Nunca imaginei que haveria de estar com ela vinte anos depois. Portanto, eu sou lésbica. E sempre fui. Nunca deixei de ser. Sucede que não te contei porque não imaginei o que o futuro me reservava. O regresso da Madalena. E a joana na tua vida.

 

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