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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

AZUL - Cap LXIII


Tita

16.10.16

Clara: Emagreceste.

Joana: Tu também.

Clara: Não fui capaz de comer grande coisa.

Joana: Eu vomitava.

Clara: Disseste-me. Já estás bem, não é?

Joana: Sim.

Clara: Não foste à faculdade, claro.

Joana: Claro que não. E tu?

Clara: Não.

Calaram-se. Ficaram frente a frente muito tempo. Sem palavras. De olhos cerrados. Estiveram assim até as almas se reanimarem.

Joana: Vamos ver o mar?

Foram comer junto à praia. Comeram imenso. Embora lhes doesse um pouco o estômago. De uma forma tácita, encetaram um processo comum de recuperação. O corpo doía-lhes. Cansado nos músculos e nos ossos. Cada uma tinha uma nódoa negra bem visível no peito. Clara olhou dentro dos olhos azuis de Joana e em seguida virou o seu olhar extenuado para o mar. Fez uma ligação perfeita de cores. Joana segui-lhe o olhar.

Clara: Duvidaste de mim? Achaste que eu não voltava?

Joana: Nunca. Só senti muito a tua falta.

Clara: Eu amo-te tanto!

Um brilho iluminou-lhe o olhar rasgado. Parecia que tinha tomado uma droga qualquer. Olhou Joana por dentro de um sorriso que despontara.

Clara: É perfeito o nosso amor. Como é perfeito! A ti eu não preciso de pedir nada. Tudo vem no ritmo dos meus desejos e necessidades.

Joana: E eu não preciso de te fazer muitas perguntas. Quase tudo o que quero saber descubro no silêncio da tua boca molhada ou através do contacto com a tua pele.

Clara: Eu precisava muito de te beijar agora. Quero todas as respostas. E responder-te a tudo.

Joana: Eu preciso de te beijar agora para saber como foi sem mim.

Levantaram-se da mesa. Descalçaram os sapatos. E atravessaram a areia, até ao mar. Molharam as mãos e a cara. Beijaram-se profundamente com sabor a sal pelo tempo de uma eternidade.

Joana: E se adoecermos de amor? Achas que podemos ficar doentes de amor?

Clara sorriu.

Clara: Não, acho que não. Juntas, não. Separadas, sim. Eu fiquei doente de amor.

Joana: Eu também.

Clara: Perdoa-me, Joana.

Joana: Gostar de ti não é uma decisão. Desejei simplesmente voltar. Aliás, tinha mesmo que voltar.

Clara: Mas perdoas-me ou não, querida?

Joana: Não sei se compreendes porque nos deixaste.

Clara: Porque dizes isso?

Joana: Porque podes voltar a deixar-me, talvez.

Clara: Tu sabes que eu te deixei por causa da minha mãe.

Joana: Tu disseste-me que tinhas de me deixar porque, pelo que vieste a saber da vida da tua mãe, o nosso amor já não te parecia tão belo.

Clara: Não parecia porque eu estava completamente louca. Doente da cabeça por causa daquelas emoções todas. Na altura, o nosso amor não me pareceu belo, de facto. Mas só naquele momento. Compreendes?

Joana: Acho que compreendo mais do que isso. E solidarizo-me contigo. Coloco-me no teu lugar e vejo perfeitamente que o teu mundo desabou.

Clara: É verdade. Perdi o pé. Coloquei tudo em causa. Mas como viver como sou se rejeitasse a minha mãe como é? Se eu não queria que a revelação dela fosse mais do que um pesadelo, como viveria feliz contigo? Foi por isso que terminei.

Joana: Eu sei.

Clara: E perdoas-me.

Joana: Não posso perdoar algo que tu fizeste sem consciência. Só posso compreender. E já compreendi, anjo.

Clara: E já não tens medo que eu te deixe?

Joana: Tu, na verdade, não me deixaste. Mas eu fiquei perdida.

Clara: Pois não. Só enlouqueci momentaneamente. Mas demorei a ir buscar-te porque estava partida por causa da minha mãe. Não lhe falei durante este mês. Nem ela a mim.

Joana: E agora já se falam. Resolveram tudo, como é evidente. O que acha ela de mim? Detestava-me.

Clara: Foi ela quem me ordenou que te telefonasse. Foi ela que me explicou que tu ficarias feliz. Que não me rejeitarias.

Joana: A sério? Olha, eu nunca simpatizei com ela. Confesso-te. Mas acho-a linda de morrer. Por isso posso ultrapassar qualquer obstáculo.

Riu-se.

Joana: A Madalena é uma mulher de sorte.

Clara: A Madalena disse-lhe que não queria mais nada com ela.

Joana: Disse? Mas, olha, eu não acredito. A Madalena é louca por ela.

Clara: Eu sei. Mas tem medo.

Joana: Pois.

Clara: Mas a minha mãe mudou. Creio que o facto de eu ser lésbica a ajudou a mudar. O problema dela era aquela homofobia e a necessidade de parecer perfeita ao mundo. Ela adora a Madalena. Não creio que a fosse deixar outra vez. Não com o que já aprendeu com tudo o que sofreu durante vinte anos e agora. O problema é que a minha mãe decidiu não ir mais atrás da Madalena.

Joana: Ai agora a Madalena vai ter que ultrapassar-se e tomar a iniciativa de ir ter com a tua mãe? Não sei se ela fará isso.

Clara: Nem eu. Ela deve continuar a achar-se uma vítima das coisas que a minha mãe lhe fez no passado. E portanto acredita que tem uma fatura que ainda não está paga.

Joana: Sabes o que acho?

Clara: Diz.

Joana: Acho que elas são duas mulheres marcadas. A maturidade tem isto. Muitas experiências traumáticas. E muitas delas mal absorvidas. Enquanto nós temos o espírito limpo. Confiamos totalmente. Por isso foi tão fácil voltar.

Há já algum tempo que caminhavam à beira mar de mãos dadas. Pararam. E sentaram-se na areia. Ficaram caladas a observar as ondas vigorosas que se lançavam cegas contra a costa. E se desfaziam. Escutavam o barulho plural do mar. Talvez o único que não incomoda ou irrita mas acalma. O barulho que é necessário ouvir quando o silêncio é preciso. As ondas morrem pacificamente. E renascem uma e outra vez. Olhavam juntas para o mar e assistiam a um movimento constante e alternado de vida e de morte. Olhavam para o mar e metia-se-lhes no peito a ideia de renovação. Só de o ver atuar. O mar explicava-lhes como tudo deve ter um fim pacífico. Como é pacífica a fusão entre a água salgada e a massa compacta de grãos de areia. Assim como a força das águas, que consecutivamente renasce nas ondas extraordinárias, apela ao sentimento profundo de vida renovada. Princípio. Sal. Sabor. E a vida que afinal nunca acaba. Os olhos delas transformaram-se em água do mar de tanto olharem. Tinham-nos por isso da mesma cor. Azul. Aquele azul que um dia Clara sonhara ter para si, agora era definitivamente seu.

Clara: O mar. Esta energia. A minha boca ainda sabe a sal. Sinto-me como que renascida. E por isso com necessidades primárias. Tenho muita fome.

Joana: Eu também preciso de te comer toda inteira.

Clara: Sinto formigueiro nas mãos.

Joana: E na língua.

Puxou-a pelo colarinho e deu-lhe um beijo ávido na boca.

Caíram na areia. Os corpos debatiam-se. O beijo não parava de magoar.

Clara: Vamos para casa.

Joana: Vamos.

Foram com as mãos cheias de segredos e mistérios comuns sobre o mar e a vida.

“Hoje fico com a Joana. Gosto muito de si, mãe”.

Teresa sorriu. “Quero ver quando é que tenho o carro de volta”.

 

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