AZUL - Cap XIX
Cat2007
20.09.16
O carro da mãe parou à porta da faculdade. Depois de se despedir de Teresa, Clara ficou uns instantes imóvel em frente à grande entrada. A olhar. A sensação era de que o fazia pela primeira vez. Tal como as ruas da cidade por onde veio passando desde casa, as cores, as formas e a dimensão dos espaços estava definitivamente alterada. Embrenhou-se no edifício. A cabeça começou a pairar pelos longos corredores que vagarosamente percorria cá em baixo. O raciocínio separava-se de si e colava-se aos tetos altos e distantes. Foi às aulas. Viu-a muito depressa dentro da sala. Não queria vê-la. Tentou abrir voluntariosamente o espírito a tudo o que se dissesse por lá durante as próximas duas horas. Fingiu pois que nada lhe era mais importante do que as teorias ali evocadas. Como esperava, conseguiu apenas a sensação de alienação agoniativa de quem está demasiado cheio de todos os pensamentos. Os que lhe vêm automaticamente, o que se impõe e aqueles a que se obriga para fugir dos primeiros. Aguentou as duas horas e não aguentou mais. Não poderia estar na aula seguinte. Viu-a depressa mais uma vez. Joana. Afastou-se. Estava a fraquejar. Por isso ficou com medo. Outra vez se via a correr para longe dela e das pessoas. Os pensamentos que a acompanhavam gravitavam agora muito cá por baixo, circulares. Mesmo por cima da cabeça. Embora o teto estivesse como sempre muito lá no alto. Porém, eles, os seus pensamentos, só subiriam se fossem leves. E não eram. Procurou um lugar que lhe concedesse uma possibilidade credível de solidão. Parou à porta da casa de banho menos usada de todas. Entrou e dirigiu-se decidida às torneiras fechadas. Abriu dois jatos de água. Encharcou a cara. E o chão. Depois deixou-se ficar ali com os cabelos compridos molhados e a roupa. Estava só. Estava melhor. A angústia que lhe ressequia o peito abrandara pelo efeito da água fria. Tinha os olhos cerrados. O queixo levantado em direção ao teto. A cabeça descansada contra a parede fria onde igualmente repousavam os braços pesados. Clara ignorou a porta que se abriu. Manteve a postura. Por instantes, não se importaria com quem entrasse. Manteve os olhos fechados. Estranhou depois o silêncio. Ninguém dizia nada. Decidiu abrir os olhos. Manteve-os ainda no chão. Ajeitou o corpo e por fim lá levantou a cabeça. No fim do movimento sentiu-se trespassada. Como se uma lâmina muito fina e bem afiada lhe atravessasse o tronco pelo estômago. Assim estava paralisada. Apenas o sangue lhe saltava nas veias. Foram brevíssimos mas intensos estes momentos de rigidez. Impelida a encara-la pela raiva súbita. Abriu-lhe uma expressão feroz. Joana baixou de imediato a cabeça. Clara deixou-se iludir por este gesto de aparente fragilidade, sentindo-se ligeiramente reforçada. Mas Joana levantou rapidamente a cabeça e já não saiu com os olhos. Recuperara a posição e pendurava agora Clara no seu olhar. No momento azul-cinza. Clara baixou. Manteve apesar de tudo a posição da cabeça mas mudou a dos olhos. Passou a olhar de lado como um bicho receoso. Joana sorriu-lhe com candura.
Joana: Eu preciso de falar contigo.
Clara virou os olhos para ela. Achou que nunca lhe tinha ouvido assim a voz. Combinava tão perfeitamente com aquele sorriso.
Clara: Para quê?
Joana: É que…
Joana calou-se, deixando cair entre elas um silêncio mais pesado do que as poucas palavras o tinham sido até então. Clara pensava que a sua decisão de escolher o vazio nada tinha a ver com os desejos de Joana. Muito provavelmente estava ali para pedir desculpa. E, talvez, falar-lhe de Madalena. Mas isso não importava, Clara escolhera entre a impossibilidade de gostar uma mulher e o vazio que significava viver sem esse afeto. De qualquer das maneiras, Joana não a queria, pelo que verdadeiramente também não existia uma escolha. Clara apaixonara-se por Joana logo no início. Mas apenas teve consciência do facto no cinema. Ali em frente a ela começava a sentir pena de si própria. Joana aparentava estar sóbria. Clara sentiu-se humilhada.
Clara: Olha, menina, eu tenho que ir andando.
Queria sair dali imediatamente e deu um passo em frente, aproveitando a força da sua declaração. Mas Joana movimentou-se em direção à porta e não se desviou. Ficaram próximas. “Tocar-lhe, não”, pensou Clara. Ficou pois parada no gesto que tinha começado. E as palavras que proferira foram sós, desaparecendo de seguida. Apenas as palavras sem os passos. Ela de facto não fora. Ficara para ali abatida.
Joana: Temos mesmo que falar.
Clara: Joana, por favor. Eu sei o que tu vens dizer. Não te preocupes. O que se passou no cinema não foi nada de importante. Desculpa ter desaparecido daquela maneira. Somos amigas e nem poderíamos ser outra coisa. Tu não queres e eu também não. Claro que fiquei um bocado confusa. E é mesmo por causa disso que devemos dar um tempo. A nossa amizade, os termos em que ela corria, foram alterados.
Clara falava com um ar cansado.
Joana: Queres deixar de falar comigo?
Clara: Não. Quero deixar de fazer programas contigo por uns tempos. Quero que deixemos de andar tão juntas como andávamos. Vamos ser simplesmente colegas de turma até isto se desvanecer.
Joana olhou-a tristemente.
Joana: Já devia estar à espera disto.
Clara: Não podemos continuar como se nada se tivesse passado.
Joana: Pois não. Tens razão.
Desviou-se da porta. Clara mexeu-se devagar até passar por ela. Uma vez lá fora apressou-se a sair dali.
Joana ficou encostada à porta a vê-la ir.