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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

AZUL - Cap XVII


Tita

20.09.16

Joana: Queres ir ao cinema hoje à noite?

Clara: Ver o quê?

Joana: Não sei. O que nos apetecer.

Clara: Pode ser uma coisa para rir? Adoro comédias.

Joana: Pode ser. Eu também gosto de comédias.

Foram mas não tiveram oportunidade de rir. Não que o filme fosse uma comédia detestável. Podia muito bem ter sido uma deliciosa comédia. Sucede que Clara, por alguma razão que a própria não descortinou, pousou a mão sobre a de Joana. Sequencialmente Joana apertou a mão de Clara. E paralisaram ambas a partir deste gesto. O filme passou no ecrã branco. Mas Clara só viu branco. E não conseguiu ver a cara dela. Apenas se mantiveram de mãos apertadas. Saíram do cinema no fim do filme. Largaram as mãos com pressa. Antes que a luz acendesse. Joana achou que devia dizer qualquer coisa.

Joana: Gostaste?

Não tinha outras palavras.

Clara: Não!

Joana: Porquê?

Clara afastou-se dela rapidamente. Seguiu pela rua húmida em passadas largas. Ouviu a voz de Joana chamar. Vinha de longe. Joana ficara para trás. Por inépcia ou por vontade. Clara não sabia. Na sua cabeça começaram a rolar extraordinárias associações de pensamentos. “Joana. Cara, voz e nome de santa”. Andou mais depressa. Correu. Como que para fugir. No entanto, conforme avançava, via-se prestes a progredir dentro de um inferno imenso. Fugiu dali com o pensamento. Vagueou. Perdeu-se de novo. Agora no meio de luzes e explosões coloridas. Tentou voltar a um pensamento sóbrio e claro. Mas não foi capaz. Desencontrou-se de si novamente. Precipitou-se numa queda. Caiu. Ao fim de alguns momentos de imobilidade interiormente rodopiante, acabou por poder respirar fundo. Abriu os olhos e olhou atordoada à sua volta. Respirava fundo e olhava em redor. O ataque de pânico tinha passado. Deu assim conta de que havia muitas pessoas na rua. Ainda assim, via-as como sombras negras no meio de pequenas luzes encandeantes. Mas subitamente um milhão de pessoas estava ali a emitir sons complicativos. Agora via-lhes as caras de uma forma incompreensivelmente nítida. Começou a tentar encaixar em si os sorrisos gravados nos rostos. Imensos sorrisos. Num instante eram risos abertos. Todos começaram a rir à sua volta. Riam-se dela. Fechou os olhos e curvou-se para a frente, protegendo instintivamente o ventre. Aos poucos recuperou de novo a respiração. O ataque de pânico, o segundo, estava a passar também. “Joana”. Joana Abrira-lhe a portas de um inferno nunca imaginado. Os seus pensamentos fugiram-lhe de novo. E formaram-se de cor de laranja e negro. Tinha subitamente muito calor. Voltou forçada à brancura fresca das vestes da santa. Que simplesmente não ardiam naquela fogueira descomunal. Mas que a si consumiam com avidez. Então porque é que não morria? Aquelas chamas deviam transformá-la em cinzas. Se assim acontecesse, o vento havia de fazê-la voar e desparecer. Os cabelos de Joana não ardiam igualmente. Mas que vento? Naquela noite de angústia não soprava uma brisa. Finalmente o organismo de Clara ordenou-lhe que não continuasse.

Clara acordou com febre já dentro de casa. Ardia.

Clara: Mãe.

Teresa estava na sala a ler. Em frente dela os olhos de Clara brilhavam nitidamente pesados, congestionados e tristes.

Teresa: O que é que se passa, Clara?

Clara: Não me sinto bem, mãe.

Teresa foi até junto da filha. Mexia-se com vagar e firmeza. Tocou-lhe na testa.

Teresa: Mas tu estás a arder em febre. Vou levar-te imediatamente para a cama. Não percebo. Estavas ótima hoje de manhã. O que aconteceu? E a Joana? Aconteceu alguma coisa com a Joana?

Nesse momento Clara já não compreendia uma palavra do que a mãe dizia. Não lhe respondeu.

Não passou pela cabeça de Teresa chamar um médico. Acreditava que, tal como os bombeiros, os médicos apenas deviam ser solicitados em casos de verdadeira emergência. De resto, nunca havia tempo para esperar por eles. Ao contrário dos bombeiros. Na verdade, não valia a pena perder tempo com médicos se existia uma possibilidade de os dispensar. Chegavam sempre atrasados. O tempo de qualidade de vida que iriam resgatar não valia as horas de existência que roubavam indecentemente às pessoas. Teresa acreditava que se devia fazer tudo para evitar cair na condição de doente. Para não perder horas de vida numa sala de espera. Neste sítio nem com a cabeça se vive. Até os pensamentos cheiram a éter. Um doente é um proscrito que depois mandam regressar. A cama e o sono sempre tinham sido o seu segredo contra as doenças e principalmente contra os médicos. Deixou Clara já estendida dentro da cama e saiu do quarto. Reapareceu pouco depois com uma bebida quente e duas aspirinas na mão.

Teresa: Em princípio não é nada. Agora tomas isto e dormes. Amanhã veremos como te sentes.  

2 comentários

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    Tita 20.09.2016

    Que ela teve.
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