O CORPO
Tita
07.11.16
Segundo Thomas Mann, a alma é a energia da vida e o espírito é a forma interna que a vida assume, ao passo que o corpo consiste na configuração material da nossa existência ("José e os seus irmãos"). Escusamos de andar a fingir que o corpo é secundário. Como gostamos de mentir. Melhor, como o equívoco nos seduz! O corpo é uma espécie de pórtico. Nada pode atingir o espírito sem passar por ele. O espírito é cego, surdo, mudo e não tem nervos.
Gosto de chocolate preto, de coca cola zero e de cigarros. Gosto de ler e de escrever. Gosto de fazer amor. Gosto de qualquer manifestação de ternura com as mãos. Gosto de musica. Gosto de conversar. Preciso muito do meu corpo. Agradeço-lhe tudo o que me dá. Espero morrer quando o meu corpo estiver demasiado cansado e a minha alma estiver farta de me suportar o espírito já feito de uma certa forma inalterável.
Compreendo que não é saudável ver as pessoas gostarem de coisas minhas e em mim que eu não gosto. Percebo que é muito importante aceitar-me. Não tenho de ser melhor do que aquilo que não sou. O desejo de excelência não deve afectar-me. Se um dia fizer bem, que muita gente possa aproveitar.
O assunto comigo talvez seja fazer as pazes próprias. Se é que eu ando aborrecida comigo. O que pode até não ser verdade. Não gostava de ser outra pessoa. Olho em volta e não vejo ninguém, admirando tanta gente que é capaz do que eu não sou. Gosto de muita gente mas não quero ser diferente de mim mesma. Não posso. Se um dia mudar para melhor, é porque não mudei. Entrei apenas num outro nível de síntese.
Gostava de ter a boca um bocadinho maior, mas, para já, vou ficar com a que tenho. Se um dia fizer uma estética para aumentar a boca, não vou deixar que esta que agora trago desapareça. Isto é que é entrar num outro nível de síntese. Fundamentalmente, a mudança faz-se a subir degraus emocionais. Não. Não é a cabeça que muda. Mudam as emoções. E, na verdade, não mudam. Sintetizam-se com a apreensão da novidade que nada tem de novo. Que nos chega e se ajeita dentro de nós num processo pacífico de aceitação dos efeitos do tempo na vida.
Tenho pena do que deixei para trás. Mas não há outra alternativa. Temos que deixar para trás tudo o que fica para trás porque o tempo nos empurra. O passado não tem existência material. É só memória. Não podemos mexer na memória. Nem com a falta dela. Esquecer não é perder. A sintese já ocorreu e muitos degrau nos suportaram. No futuro, que também não existe, seremos outros. A memória patrimonial somos nós em cada momento crucial da nossa própria história. No presente feito de todos os dias da nossa vida.