SAUDADE: O SIGNIFICADO DE CERTOS LUGARES VAZIOS
Tita
22.12.20
Uma festa de família, como é o Natal, requer que, pelo menos, os pais e os filhos estejam presentes nas celebrações. Os meus pais já não estão por cá. Por isso há dois lugares importantes na mesa que ficam vazios. Uma vez que, por definição, passaram a inocupáveis. Uma pessoa, se resolve ficar, nem que seja por breves instantes, a pensar em vazios deste género, verifica imediatamente que tem qualquer coisa a menos a animar-lhe a alma. Deve ser a isto que se chama saudade.
Em pequena era uma surda odiadora de bonecas. Coisa por demais conhecida de todos. Ora, a minha mãe comprou, como presente de Natal, uma linda boneca quase da minha altura. Um tanto surpreendida, apanhei-me a pensar que àquela eu não ia arrancar a cabeça e os membros ou destruir-lhe as roupas. Sucede que, malgrado as minhas expetativas, a minha mãe foi entregar o brinquedo a uma amiga dela. Era para a filha. E eu assisti a tudo. Uma frustração! De tal maneira, que nem me lembro dos presentes que efetivamente recebi. Nunca tinha visto uma boneca tão grande. Fiquei a pensar nela ainda durante uns dias. E também nas razões que levaram a minha mãe a presentear de tal forma especial aquela miúda tão pouco entusiasmante. Nunca cheguei a saber. Por orgulho, não perguntei nada. E também nada me foi explicado. Claro que a minha mãe achou que não era um presente adequado para mim. Uma menina demasiado dinâmica. Agora porque foi dar uma boneca tão grande, a uma miúda, em meu entender da altura, parva, é coisa que nunca saberei.
Se conto esta pequena estória, e porque é verdade que esta foi a única vez que a minha mãe não acertou em cheio nos meus desejos. E tanto assim é que, já em adulta, recebi (embora não no Natal) um galo de Barcelos porta-guardanapos. Fiquei enternecida. Precisava mesmo de um porta-guardanapos. E o galo nada tinha a ver com as coisas que tinha na cozinha para decorar, pelo que ficava ali muito bem. Destacava-se como se fosse uma peça de arte extraordinária.
Com o meu pai o acento tónico colocava-se na ceia de Natal na parte não doce. Tinha de ser bacalhau. E feito do modo tradicional. Na altura não percebia bem isto. É que andávamos o ano inteiro a comer ceias de Natal. Com efeito, o meu pai comprava regularmente bacalhau ali na Rua do Arsenal. E era tanto, que enchia meia despensa. O prato favorito do meu pai, pois. Bacalhau cozido. Claro que, deste modo, as coisas para nós não eram tão divertidas. Nem para a minha mãe, que detestava a rotina. Era, aliás, também por causa desta rigidez dele que ambos se punham a discutir em alguns natais. Na verdade, para o meu pai o Natal não era uma festa. Tratava-se antes de uma celebração de cariz religioso. E porque não celebrar com o seu prato favorito? O bacalhau era o único prazer material que tinha nestas ocasiões. No mais, o mais importante era o que era mais importante na sua vida: estar com a sua mulher e os seus filhos. A família. Foi com o meu pai que eu aprendi a respeitar o Natal.