O CÃO
Tita
20.02.24
Sobre mim e o meu amor cão.
By Catarina Miranda
Se olhássemos para a jaula sem sermos vistas, perceberiamos uma ninhada de ratos apenas. Saberíamos não serem ratos porque a mãe era um cão. Mas não. Quando olhámos fomos vistas, ela foi vista.Uma mulher alta e com um cabelo forte e alourado foi vista por uma miniatura preta de olhos gigantescos e suplicantes. A nossa ideia era a de aquilo ser um cão, mas não era bem. Era o tipo de coisa que encontraríamos num passeio humanitário à India, uma das economias emergentes, bem sei, mas com milhões de desgraçados que desconhecem semelhante classificação. Se calhar o Bangladesh seria mais indicado. Fica a India pela compleição física daquilo cão. Este cão era um desses desgraçados de algumas ruas de Nova Deli, em bebé. Um olhar que nos condenava a querer alimentá-lo para sempre. É difícil, a alguém que o veja, safar-se de semelhante sentimento mas para ela foi ligeiramente diferente. Era nitidamente um reencontro. Uma situação familiar como se sempre tivessem esperado um pela outra. Já se conheciam há anos, havia fortes motivos para esta sensação, todos lógicos e nenhum esotérico. Ela, muito alta tinha umas mãos naturalmente grandes e eu juro que quando nele pegou, a mãe cão terá sido esquecida de imediato pelo seu filho. "Os cães foram feitos para viverem com as pessoas, somos as pessoas deles", pensei ao mesmo tempo que olhei para ela com aquilo cão ao colo. E ela. Vi-lhe um sorriso e uma luz no rosto que não tinha visto antes. Havia nela um alívio de amor fratenal, filial...pessoal. O mundo inteiro podia estar no perigo de terminar em estrondo, aquela miniatura ía ser o sobrevivente naquele colo, o mais protetor que vi na vida. Tudo nela era vontade de salvar e de dar alegria apesar de nos dizer e contar que o cão havia de ter um feitio do arco da velha, de ser um egocêntrico intragável e de cair para o lado com merdas que só ele ía sentir tal era a fragilidade do pobre desgraçado. Pois era, mas ela dizia-nos o inferno do cão com a expressão preocupada mais radiante do mundo. Aturá-lo? Como não. Adorá-lo também.Tudo isto por causa de um cão? Sim, sim, sim. Será preciso muito mais para tirar a limpo a capacidade de amar numa mulher? Não, neste caso não é. Bastou este reencontro para haver epifania e revelação, comigo foi assim. Aquela luz afetuosa não é dela, é ela. Talvez por ter reconhecido ali uma felicidade antiga, talvez por ter tido um deja vú, talvez por ter sido percebida por um cão bebé. Credo, foi das sensações de amor mais cristãs que me aconteceram, o amor pelo amor e logo para mim, uma ateia tão cristã. Eu vi aquela coisa com ar de desgraçado indiano. Vi-o pela primeira vez. Mas para ela foi um reencontro. Será o melhor amigo desta mulher assim ele nos aceite para suas pessoas. Ela já lá consta que eu vi o parvo com um ar tristissimo a abanar a cauda, no pescoço dela, aninhado.