Apetecia-me falar do espírito de grupo. Aquele sentimento que une pessoas que, de uma forma ou de outra, têm algo em comum e por isso procuram concretizar qualquer coisa juntas. Enfim, pessoas construtivas e criativas. Sejam bons ou maus, os grupos tendem a formar-se voluntariamente. Mas uns mais do que outros. Porque os grupos desconstrutivos, inconscientes e deficitários não percebem bem que se estão a formar. Falo dos grupos que se formam sem uma declaração inicial de união, de projecto, de actividade e do valor de cada contributo. Estes eventos apenas nascem. As pessoas vão-se juntando umas às outras porque têm problemas comuns e um determinado espírito de desorientação. O ajuntamento dá-se, portanto, em torno de alguém que aparece como chefe sem ter de o dizer. Tenho vontade de dizer que estes grupos me agoniam. O seu único escopo é criar desutilidades e também problemas de vária ordem.
Lembro-me de haver um grupo assim idiota lá na primeira classe. E que era constituido por toda a classe. Aparentemente isto não faz sentido. Mas faz. Vejamos. Era um grupo porque existiam duas chefes naturais que apareceram primeiro. Portanto, não chefiavam nada nem ninguém. Mas rapidamente, porque estas duas tinham o poder de aumentar e diminuir o tamanho do grupo quando lhes apetecia, apareceu o grupo da classe. Diminuir e aumentar o grupo significa demitir, integrar e reintegrar membros. É bom lembrar que o poder não é de quem o tem mas de quem o dá. Adiante. Isto é uma ordem de ideias. Nesta ordem de ideias, acontecia, à vez, o grupo ser constituído pela classe inteira, por meia classe, por quase toda a classe e, nos momentos áureos de crueldade, pela classe toda menos uma menina. Exacto, menos uma. A ostracizada. Porquê? Ninguém sabia ao certo. Por vezes os chefes têm de mostrar quem manda. Talvez fosse isso.
Como disse, quem inventou esta coisa moralmente incompreensível foram aquelas duas. De uma forma simplificada, informo que o poder que lhes foi conferido pelas meninas da classe estava relacionado com os vestidos, as bonecas e as canetas de filtro. Segundo me lembro, apareciam sempre com os vestidos mais bonitos e variados, talvez trouxessem uma boneca diferente todos os dias e aquelas coisas para o desenho eram sempre novas e último modelo.
A primeira conclusão a retirar do cenário descrito é que as crianças são do mais interesseiro que há. Assente. Bom, mas esta não é a conclusão mais importante. As crianças, dada a sua fragilidade, tendem a colocar-se do lado do mais forte ou do poderoso. Esta é que é a conclusão mais importante. Não é por acaso que qualquer super-herói do cinema ou da banda desenhada é adorado pelas crianças. Ah! Claro, há outra conclusão ainda: as crianças são ditadoras, cruéis e têm uma série de demais defeitos de carácter que se compreendem porque ainda não têm o carácter formado. Por fim, nenhuma criança gosta de se sentir abandonada, logo tem de se sentir integrada. Esta era a conclusão mais importante ao lado das mais importantes acabadas de referir. Isto deve ser coisa que vem logo do berço. O medo do abandono. Portanto. Em resumo, as crianças, por serem crianças, estão desculpadas.
Eu já nasci com problemas de visão. Coisa hereditária. Só resolvi isto quando operei os dois olhos. Mesmo assim, há coisas que me continuam a escapar. Deve ser porque só vejo a 80% do olho esquerdo. Não é nada fisiológico. É apenas preguiça, segundo diz o médico. Também pode ser por conveniência, digo eu. Naquela altura eu odiava vestidos e saias. Antes pelo contrário, adorava sujar a bata branca, não sabia o que fazer a uma boneca e, como era canhota, tinha péssimo jeito para o desenho. Por tudo isto, aquela excitação em torno da chefia não me tocava. Não via, de facto, onde estava o interesse. Aliás, não via chefia nenhuma. Eu queria era correr, subir árvores, sujar-me, etc. Fazer tudo aquilo que uma menina tem direito. Ou então era hiperactiva. Não, não era hiperactiva.
Seja como for, importa sublinhar que vivia na ilusão de que não existia um grupo dentro da minha classe. Acreditava que os olhos brilhantes, designadamente à volta dos vestidos tinham esse significado. Adorar vestidos. Como os meus olhos não brilhavam assim estimulados, brilhavam com outras coisas (como, por exemplo, com aquilo que a professora dizia), os meandros da vida política da minha turma da 1ª classe da escola primária escapavam-me de um modo fácil.
Não, não era hiperactiva. Volto a dizer. Mas, de facto, a minha cabeça não parava. Não parava nos olhos vítreos de uma boneca loura. Uma candidata a criatura viva, que não estava obviamente viva. Mas também não estava morta. E também não era criatura. Era uma coisa. Uma coisa parada. Para que servia aquilo? Observei. Era para vestir e despir. Pior, era para fingir que se alimentava. E que dormia. Era para fingir que era um bebé. Já tinha notado antes que os bebés não usavam vestidos daqueles. Nem tinham o cabelo assim. Aliás, a maioria dos bebés tem pouquissimo cabelo. Além do mais, sabia-se que as meninas da escola primária não estavam autorizadas a pegar em bebés, alimentá-los, dar-lhes banho, e essas coisas todas que se fazem aos bebés. Porque foram previamente informadas que não tinham competência para isso. Daí que deviam treinar em não-criaturas com estilo de estrela de cinema. Criaturas não vivas que pretendiam ser uma mulher bela (ou o ideal de mulher) e um bebé numa só. Coisa de filme de terror. E efectivamente, nada disto mes assustava especialmente nem tinha qualquer outro interesse para mim.
Sobre as pinturas, fartei-me de tentar. Mas como só fazia m..., resolvi desistir. Aceitei humildemente a minha limitação e nunca mas me senti frustrada na matéria.
Repito, aquela excitação em torno da chefia não me tocava. Claro que a própria chefia também não se vinha meter comigo. Apenas porque não tinha argumentos para me subjugar. Se me tivessem mostrado um carrinho telecomandado, talvez a coisa fosse diferente. Não sei.
Mas, para o que importa, eu dava-me bem com toda a gente. Ponto. Mesmo com a chefia. Porque evidentemente não a reconhecia como tal. E, como referi, não me dei logo conta que a classe inteira era chefiada por aquelas duas miúdas que, em meu entender e concretamente por causa das bonecas e dos vestidos, eram a representação máxima da estupidez e da ineptidão. Como imaginá-las a chefiar qualquer coisa? Mas não as detestava por isso. Tinha só um bocadinho de pena. E também um certo desprezo, confesso. Mas disfarçava e pronto.
Vejo que existem pessoas adultas que formam grupos do estilo do meu da primeira classe. Inacreditável.Mas é verdade. Bom, apetece dizer logo que são infantis e frágeis. Que partilham de grande parte dos defeitos de carácter próprios das criança. Está dito. Agora o que importa sublinhar é que, tratando-se de pessoas adultas, não têm desculpa. Do muito pouco que conseguem, são capazes de deprimir transitoriamente todas as pessoas normais com quem se cruzam. Podia começar agora aqui a falar do grupo da primeira classe dos adultos. Mas isto só se estivesse com o sentido de humor no ponto certo. No "al dente" do sentido de humor. Porém, não estou. E, como me recuso a abordar um assunto destes com seriedade, perfiro não continuar.
Para o que importa, resta acrescentar que ainda não encontei nenhum grupo de nada que me convencesse a coisa nenhuma. Devo ser aqui alguma caçadora solitária. Óptimo.Entretanto, já visto saias e vestidos. Não, não me rendi a nada. É que hoje já tenho idade e vida para isso.