Finalmente decidi retomar o "Azul". Esta coisa que eu tenho aqui em casa. Como se sabe, já publiquei alguns excertos neste blog. Comecei a escrevê-lo há muito tempo. Entretanto parei. Também já disse isto. Creio que me perdi no meio das personalidades dos personagens que inventei. Nada de novo. É um enredo sobre mães e filhas, essencialmente. Já o tinha dito. Mas agora quero dizer mais coisas e outras que não estão aparentemente relacionadas. Aparentemente.
Claro que tenho desejos e algumas pretensões. No que respeita ao livro. Mas, em princípio, vai para a gaveta. Não é assim tão mau escrever para a gaveta. Pelo menos ela não nos critica. E nisto as gavetas são como os cães e os gatos. Apenas não nos lambem as mãos. Embora os nossos animais domésticos, por seu lado, não nos entalem os dedos. Em comum entre cães, gatos e gavetas ainda há o seguinte: estão todos na nossa casa e precisam de alimento. É claro que as gavetas não morrem se não comerem. Mas convém dar-lhes alguma utilidade. Senão, mais cedo ou mais tarde, alguém as deita fora. O que não deixa de ser também um modo de morrer.
O Fernando Pessoa dizia que "o sentido útil das coisas é elas não terem sentido útil nenhum". A um nível mais profundo de pensar, não há como discordar disto. Se a vida corre para a morte, pouco ou nada faz sentido útil. No entanto, se olharmos para a vida enquanto valor em si mesmo, então quase tudo tem um sentido útil. Qualquer coisa serve para algo e o que não serve é destruído ou esquecido, o que é quase a mesma coisa. O desaparecimento ou o esquecimento.
O meu livro é, como disse, sobre os relacionamentos entre mães e filhas. Sobre o que as une e separa. Sobre as respectivas dependências emocionais. Sobre as causas determinantes dos destinos. Sobre os modos de ser de mulheres. Importa-me este assunto. É difícil para uma mulher compreender bem uma mulher. Talvez por isso as mães se entendam melhor com os filhos do sexo masculino. Por outro lado, talvez os pais se relacionem melhor com as filhas. Não que as compreendam bem. Porém, ao contrário das mulheres, parece que os homens não precisam de compreender tudo para conseguirem amar sem dramas.
Se há algo que me dá grande gozo neste blog é o descuidado com que posso escrever. Tudo sai ao ritmo dos pensamentos. Quase. Eu não consigo escrever tão depressa quanto penso. No entanto, esforço-me. Esta liberdade de escrever o que quero e como quero é inestimável. Os assuntos não têm de o ser propriamente. Os planos não existem. A estrutura vai-se montando. Não me preocupo nada com o aprofundamento dos casos. Não quero fazer esforço. Isto para mim é como jogar um King. Recuso-me a decorar cartas. Perco e ganho de acordo com a sorte, intuição e raciocínio. Mais nada. Não me importo de perder ao King. E por aqui (no blog) ninguém me paga nada. Realmente é uma pena que não se pague ou receba por actividades apenas relaxantes. É uma pena de um certo ponto de vista, evidentemente. É que, de outro modo de ver, se estas coisas dessem direito a recebimentos e compensações perdiam a essência ou o seu sentido útil. Ou seja, não provocar pressões.
Nunca me interessei pelo Bridge por ser demasiado sério. Aquilo não é um jogo é uma função. É preciso compreender que existem espaços e momentos da vida em que podemos ser "meias tintas" e não há mal nenhum nisso. Não é possível jogar/não jogar Bridge. Portanto, para mim o melhor é não jogar. Não é que eu não goste do jogo em si. Do Bridge. Claro que gosto. Dá é muito trabalho. Dá tanto trabalho, que a maior parte dos jogadores recebe dinheiro pela sua prestação. Quando ganha, claro. Mas eu gosto de pontes (bridges). Uma ponte é sempre uma ligação. Uma possibilidade de ir e voltar. De conhecer. De trazer. De levar. Em princípio, as pontes proporcionam vistas bonitas pelo caminho. Também é uma bela qualidade. Uma ponte é uma esperança de chegar. De visitar. De compreender. É uma oportunidade de dar.
Independentemente das discussões que envolveram Hobbes, Russeau, entre outros amigos, eu, sem querer entrar pelas teorias do contrato social (pois não interessam para a minha questão), eu, dizia, acredito que o homem, se não nasce débil emocional ou com outro defeito de origem, é bom. Basta olhar para uma criança. Um bebé. Ver como é frágil e aberto. Como espera. Como acredita. A extensão da sua dependência. Mais, basta olhar para o mundo. Os adultos governam o mundo. Nós, portanto. Nós tantas vezes mesquinhos, egoístas, maldizentes, conflituosos, imaturos, estúpidos, gananciosos, doentes. Nós hoje temos o mundo na mão. Se nós, esta amálgama de desconfianças emocionais, fossemos realmente maus, já tínhamos arrancado os olhos uns aos outros e, depois de cegos, púnhamos isto tudo a arder.
No "Ensaio sobre a cegueira", José Saramago dá-nos esta visão realista. O mal que somos capazes de fazer ao mundo e ao próximo. No entanto, veja-se porquê. Pela doença, pela fome (de comida e de sexo). Pelo medo essencialmente. A crueldade do ser humano não é maior do que a de uma bela leoa esfomeada. E a sua maldade não vai além da de uma hiena sorridente. Se os animais não estão interessados em se destruir sem um motivo, também os homens não o estão. Para os homens e para os animais esse motivo não existe. Mas os homens não o querem porque não querem. Porque podem. Aqui está uma das diferenças. O instinto e o instinto mais a vontade racional a que se junta o padrão emocional humano.
Com certeza que existem biltres. Uns são loucos, outros tarados, outros têm distúrbios da personalidade. Claro que existe gente muito má. Porquê? Talvez a maldade dos maus resida sobretudo na frieza. Confesso que isto eu compreendo mal. Há uns tempos vi, na SIC notícias, um documentário sobre o maior "serial killer " americano. Perdida a conta às mortes que o homem provocou, interessava saber porquê. Por nada que realmente valha a pena salientar, afinal. Ou seja, por nada mesmo. Para ele, tirar uma vida tinha o mesmo impacto emocional do que comer um "hot dog". Talvez lhe provocasse um bocadinho de azia de vez em quando. Mais nada. Está bem. Por outro lado, o senhor tinha família. Mulher e filhos, que amava. Amava, portanto. Pereceu-me sincero. À conclusão só pode, eventualmente, chegar-se por uma via. Para ele todos os outros são os outros. Perfeitos estranhos. Não lhe era possível atravessar pontes. Como se todos os que moravam para lá do jardim da sua casa não fossem iguais aos do lado de dentro. E para isto não existe qualquer explicação. O senhor não é doido, como o Hitler, por exemplo (foi o que disseram, que o homem não era doido). Então é o quê? Indiferente ao que o transcende? Perfeito. Creio que não existem animais assim.
De facto, há muito de péssimo no mundo, sendo que a culpa é quase exclusivamente nossa. E eu nem sei mais o que dizer. Apetecia-me deixar aqui uma palavra positiva. Mas, quando ia a escrever, parei. Senti-me muito ridícula sentada aqui, em frente ao meu computador, de cigarro na mão e a pensar que não me apetece jantar lombos de borrego.
O que eu queria dizer sobre o livro que recomecei a escrever é que é muito difícil. Parar, sentir, compreender, pôr por palavras, seguir uma estrutura, alimentá-lo de consistência racional, moral e emocional. É muito difícil ser profissional, mesmo que o patrão seja a Gaveta.