Naquele dia Teresa decidiu ir buscar a filha à faculdade. Viu-a ao longe ao lado de uma colega. Saiam juntas. Num gesto automático, endireitou-se no banco do carro. Vislumbrou imediatamente um cabelo loiro apanhado. Ao longe distinguiam-se perfeitamente os gestos. O coração de Teresa acelerou. Agora que já estavam ali mesmo a um metro podia ver a cara dela. Os olhos azuis. As sardas cor de laranja. A rapariga sorriu-lhe timidamente. E baixou imediatamente a cabeça. O coração de Teresa batia perto da boca. Emudeceu quando tentou dizer alguma coisa. Sentiu uma vontade enorme de meter a filha dentro do carro e fugir dali com ela. A verdade é que também estava paralisada. Joana continuava a olhar para o chão. Clara sorria abertamente feliz.
Clara: Olá mãe. Esta é a minha amiga Joana. Somos da mesma turma.
Teresa estava gelada. Mostrou um sorriso pela metade. E olhou-a bem dentro dos olhos.
Teresa: Como vai, Joana?
Joana: Como está?
Teresa mantinha-se ao volante do carro sem fazer menção de sair. Por isso nem um beijo ou mesmo um aperto de mão. Joana vacilou com os olhos. Mas depois enfrentou. Teresa pensou em Clara. No que ela poderia estar já a pensar. Mas concluiu que os poucos segundos calados de observação recíproca com Joana não foram incomodativos para a filha, que nem sequer deu conta deles. Com efeito, Clara estava do lado de lá daquela ténue fronteira de energia que se instalara. Daí o convite sossegado:
Clara: Olha, a mãe vem buscar-me para almoçar. Se nos quisesses acompanhar…
Joana respondeu de forma rápida e convincente.
Joana: Obrigada, Clara. Mas fica para outra ocasião. Tenho um compromisso precisamente para o almoço.
Clara conhecia perfeitamente os compromissos de Joana naquele dia. Que, para o almoço, não existiam. Por esta razão, uma certa espécie de angústia tocou-lhe o peito. Depois esqueceu-se dela. Da angústia.
Teresa: É pena. Mas teremos certamente outras ocasiões para conversar.
Joana: Com certeza.
Já a sós com a filha, Teresa testou.
Teresa: Quem é esta tua amiga? É giríssima. Que idade tem?
Clara: A mesma que eu. Vinte. Acho que é mais velha uns meses.
Teresa: Parece ter mais. Que postura admiravelmente madura.
Clara: Talvez tenha lido livros a mais.
Teresa: Leu livros a mais? Que sabes tu da vida da pequena, Clara?
Clara: Sei que é muito simpática e que se farta de ler.
Teresa ia descomprimindo.
Teresa: Não te sintas afetada. Tu também lês muitos livros.
Clara: Não tantos como ela. Eu leio os livros que preciso e os que me interessam.
Teresa: Nem tudo se aprende nos livros. Tu sabes.
Clara: Mas talvez se entendam algumas coisas que de outra forma não podíamos saber.
Teresa percebeu uma amargura fina na voz da filha.
Teresa: Eu sei. Sempre me esforcei. Esforcei-me muito. Tu sabes.
Clara: Sei, mãe. Não se preocupe. E por favor pare de dizer “tu sabes”.
Teresa riu-se. Depois ficou séria.
Teresa: Eu cometi erros.
Insistia. Nunca ficava inteiramente descansada quando tinha de falar sobre o assunto. A ideia da culpa de ter estado muitas vezes ausente enquanto a filha crescia intranquilizava-a. Gostaria de ter feito melhor.
Clara: Talvez. Embora eu não tenha visto nenhum muito grave.
Ficaram caladas por um instante. Depois Clara retomou.
Clara: De qualquer modo, eu também amadureci um bocado sem si. A mãe sabe.
Riu-se porque disse “a mãe sabe”.
Clara: Na sua forçada ausência aprendi a resolver muitos problemas da minha vida de criança, e depois de adolescente, sozinha.
Teresa: Eu sei. Mas não achas que tive mérito quando fui capaz de te fazer compreender desde muito cedo porque não podia estar mais tempo contigo?
Clara: Como eu tive mérito em perceber, apesar de ser tão pequenina.
Teresa: Os louros são todos teus, então?
Clara: Nem pense. Hoje vejo como foi importante perceber na altura porque não estava comigo. Foi por isso que não tive medo. Nunca me senti abandonada por si.
Teresa relaxou os músculos e sorriu com benevolência.
Clara: Mas hoje em dia a mãe podia fazer melhor.
Teresa: Clara, tu já és uma mulher.
Clara: Talvez mas continuo a precisar de si. De outra forma, é claro. Mas continuo a precisar da sua companhia. E a mãe está sempre metida naquele ninho.
Teresa riu-se.
Teresa: Que ninho, o escritório?
Clara: Não estou a brincar, mãe. Mas deixe lá isso. O que importa é que podíamos ser as melhores amigas.
Teresa: Ai sim? Pois deixa-me lembrar que as mães e as filhas não devem ser as melhores amigas. Deve existir amizade mas ser mãe é ser mãe, ser filha é ser filha e ser amiga é ser amiga. O estado simples de amigo implica aceitar a contingência. A possibilidade do fim. Ser mãe implica uma relação para o resto da vida com o seu filho. Mesmo nos casos extremos em que existem rompimentos. Tu não deves desejar ser a minha melhor amiga. Eu tenho um papel. Uma função fundamental. Não se podem misturar as coisas.
Clara: E por isso a mãe tem de estar num patamar superior a mim.
Teresa: Pois. Que remédio.
Clara: E quem toma conta de si, mãe?
Clara tinha noção da falta de inocência da sua observação.
Teresa: Ora, menina. Eu sou uma mulher feita. Já não preciso que tomem conta de mim.
Como a filha previra, Teresa ficou realmente incomodada.
Clara: É o trabalhinho, mãe. Não pense que me ilude.
Na verdade, era só aqui que Clara queria chegar. Por isso não adiantou mais nada. Sorriu à mãe com ternura. Teresa suspirou devagar. No entanto, a angústia do encontro com Joana não desparecera. Lembrava também Madalena. E o que acontecera. O que é que Clara estava a fazer com a namorada de Madalena?
Teresa: Bom, mas então, voltando à tua amiga Joana, penso que não foste justa com ela. Parece madura mas não será porque lê livros a mais.
Clara foi seca.
Clara: Talvez não.
Teresa: Porque te pões assim, filha? Tenho a certeza que gostas dela.
Clara: Gosto, mãe. Mas porque insiste tanto em falar da Joana?
Teresa: Clara, eu “não insisto tanto”.
Clara: Ela tem os olhos da mãe.
Teresa viu que foi um impulso. Uma tirada inconsciente sem objetivo muito bem definido. No entanto, perturbou-se.
Teresa: Da mãe… Que mãe?
Clara: Os seus olhos, mãe. Os seus. Ela tem uns olhos que lembram os seus. Reparou que é praticamente o mesmo azul?
Teresa assustou-se. Não compreendia o que a filha sentia para estar a dizer aquelas coisas.
Teresa: Ora, Clara. Deixa-te de disparates. O que queres dizer? Olhos azuis são olhos azuis. Mudam sempre de cor conforme a luz. Nem sempre estão azuis. E raramente são iguais.
Clara: Mãe eu estou de acordo consigo. A Joana não é uma pessoa vulgar.
Teresa: Enfim, uma menina simpática. Queres mais alguma coisa? Posso pedir a conta?