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CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

CAFÉ EXPRESSO

"A minha frase favorita é a minha quando me sai bem"

AZUL - Cap XLVII


Tita

05.10.16

Clara olhava para ela. Todo o caminho olhou para ela. Simplesmente era incapaz de não olhar. Tanto, que na sua cabeça estava já gravado o perfil do rosto, as mãos sobre o volante e o peito. Os seios no seu movimento particular sobre a circulação do sangue e a respiração. Clara também não via pela força de tanto olhar. Já só tinha a imagem que se gravara no cérebro. Por isso não pensava. Não conseguia pensar. Tinha os olhos enormes saturados. Assaltou-a uma vontade súbita de fugir dali. Uma sensação de ausência de vida agitou-a violentamente. Agora já queria falar mas não sabia o que dizer. Percebeu que não conseguia mexer-se. Foi assim o percurso todo.

Há um bom tempo que Joana não a olhava. Estavam tão perto da sua casa. Um quarteirão. Joana parou e encostou o carro. Desligou o motor. Ficou parada a olhar em frente. Depois deixou tombar a testa. Clara perdeu qualquer contacto com a realidade. Deixou de sentir o corpo e a alma como que se apagava nele.

Clara: Vai para o teu prédio e entra na garagem.

Joana não respondeu. Levantou a cabeça e voltou a olhar em frente. Deu à chave e conduziu. O carro andou sozinho ao acaso dentro do espaço sombrio e abafado. Até que ficou imóvel num sítio qualquer. Com a energia antes contida, Clara saltou para fora do carro e foi encostar-se a uma parede cinzenta e fria. Já não olhava para Joana. Tinha os olhos pregados no chão. Os braços pendurados ao longo do corpo. Não encontrava força nas mãos. Nem nas pernas. Clara estava ali a um metro a mirá-la com aqueles olhos brilhantes absolutamente demolidores. Alguém deu um passo em frente. Alguém deu o primeiro passo. Agora estavam tão próximas. Clara colocou-lhe as mãos na barriga. Mas imediatamente pensou em empurra-la. Joana segurou-lhe as mãos com força. Caíram, por fim, nos braços uma da outra. De uma forma abrupta. Apertaram-se muito. Joana relaxou os braços e procurou a boca de Clara. Que recusou o beijo mas estreito-a mais contra si. Para ela não fugir. O corpo de Joana obedeceu. Colaram as faces. Ficaram imóveis assim. Sem deslocar o corpo, Clara colocou a mão por baixo da camisola dela. E passou-lhe suavemente com a ponta dos dedos pela pele da cintura. Apenas as pontas dos dedos. Mantiveram-se assim por minutos. A alguns centímetros da fria e cinzenta parede de betão. Num equilíbrio próprio de dois corpos que se empurram um contra o outro. A lentidão de cada segundo que passa imperturbável num relógio de pulso, marca o tempo de cada movimento facial. O coração pulsa, para e recomeça a bater. O motor do relógio é o coração. Que move os seus ponteiros de acordo com o seu ritmo próprio. Lentamente. Cadenciadamente. Segundo a segundo. Os rostos colados movem-se assim no ritmo definido pela máquina. Vão em sentidos opostos que convergem no objetivo do beijo.

Respira-se toxicidade dentro da garagem pelos pulmões de quem lá vá. Entram e saem carros de acordo com o ritmo habitual de um sábado. Os elevadores sobem e descem com gente dentro. Passam malas pendidas em ombros distraídos. E outras presas nos dedos inchados das mãos. Os olhos absorvidos que trespassam a realidade monotonamente densa não as vêm. Não as podem ver. Porque a vida delas corre num mundo paralelo absolutamente exclusivo das suas duas almas unificadas. Elas também não veem nem ouvem ninguém.

O cheiro de Joana mistura-se no sangue de Clara. E corre-lhe célere dentro das veias azuis. Os cantos das bocas tocam-se. O movimento fica parado ali naquele momento em que o relógio deixa de trabalhar. O coração deixou de bater. A máquina recomeça o seu ritmo. O coração retomou. As bocas recomeçam a mover-se. Encontram-se por fim numa compatibilidade perfeita. As ocas trémulas são retidas. O relógio volta a parar. De novo o peito parou. O mundo também parou. Aquele mundo paralelo feito à medida das suas almas. A ideia de um beijo queimar sem dor é uma impossibilidade. Por isso elas suportavam o ardor nos lábios em carne viva. Os ponteiros do relógio de pulso recomeçaram a andar. É um relógio suíço. Daí tamanha precisão. A cruz branca marcada no fundo encarnado ainda sobressai no pequeno mostrador. Mas Joana já não encontra os seus lábios perdidos na cruz que agora é encarnada. O constante morrer e renascer do coração libertou-se da obrigação imposta pelo círculo desenhado pelos ponteiros do relógio. E acelerou descompassadamente. Joana molha a boca de Clara com a língua. Os ponteiros do relógio apagam-se. O mostrador da máquina já não tem números- A cruz é encarnada. Não há mais nada para além da cruz encarnada. As línguas delas estão inundadas de sangue transparente que se mistura. O relógio desapareceu. Agora é a velocidade do sangue bombeado pelo coração desenfreado que comanda os gestos e os sentidos. A máquina encarnada já não voltará a parar. Os corpos giram. As costas de Joana dão conta da parede de betão. O corpo quente de Clara pesa contra o seu. Joana sente-se mais pequena. As pernas enormes de Clara abrem as suas. Os jeans apertam-lhe as coxas e a barriga. As mãos de Clara têm o comprimento de todo o seu corpo. Fugir é uma impossibilidade. Joana deixa que a morte venha. O seu corpo desfaz-se. O sangue transparente escorre-lhe para fora da boca e pelo interior das pernas para a mão ensanguentada de Clara. Sangue branco viscoso escorre e encharca-lhe o pulso. A mão voltou a mexer-se como se fingisse querer estancar a hemorragia. Mas a verdade é que os seus longos dedos procuravam agora planos interiores escorregadios. Os cabelos de Clara colavam-se no rosto. Empurrava as suas coxas contra as dela. Queria derreter-se sobre ela. Penetrar-lhe feita em líquidos os poros dilatados da pele. Queria viver pelo menos por um momento único dentro dela. Abriu-lhe mais as pernas com os joelhos e pressionou-a outra vez contra a parede. Aproximou o seu rosto selvagem do de Joana e prendeu-lhe para sempre o olhar. Os seus dedos trémulos penetraram. O corpo de Joana abriu-se para Clara entrar. Por entre os lagos e caminhos desta viagem sem destino certo imaginável, o silêncio marcava as palavras pouco ditas.

Clara: Diz-me. Já estiveste com alguém assim desta maneira?

A voz saia-lhe entrecortada.

Joana: Eu nunca estive com ninguém antes.

O corpo de Joana estremeceu imediatamente. Clara empurrou os dedos com mais força dentro dela.

Clara: Porque me mentes assim?

Joana: Eu não estou a mentir.

Joana sorria e olhava-a com os olhos húmidos.

Clara: Eu não queria ninguém na tua vida antes.

As vozes quase não saiam do peito.

Clara: Mas houve. E eu não queria, Não queria.

Joana: Amo-te tanto, querida.

Clara: E eu a ti.

Os braços de Joana envolviam agora a “linda” cabeça de Clara. Clara saiu de dentro dela. Abraçaram-se com inexplicável desespero. Com força. Olharam-se como se o mundo não existisse para além do espaço exíguo que os seus pés ocupavam. As lágrimas rolaram pelas faces de Clara. Molharam-lhe a boca inchada. Estavam felizes. Era uma felicidade que lhes doía mas também lhe sossegava a alma. Como se a morte a envolvesse sem lhes tocar. Estiveram assim muito tempo. Num silêncio cheio de significados. Repleto de mensagens. Nem todas descodificadas.

Joana: Eu queria morrer agora. Eu queria que morrêssemos as duas agora.

Clara abriu os olhos sobre o azul dos olhos dela. Viu-os a pairar algures entre o céu e o mar. Cerrou os seus. Joana fechou os dela. Esperaram assim que a morte chegasse.

A PREGUIÇA NÃO É UM PECADO


Tita

18.07.12

 

 

Aposto que o Fernando Pessoa era um enorme  preguiçoso. E que, em maior ou menor medida, todas as pessoas são criativas – embora isto, em bom rigor, não valha a pena apostar, uma vez que está provado cientificamente.  Que alguns ou muitos não o aproveitem por falta de oportunidade, conhecimento ou interesse é outra questão.

 

Pois a preguiça amiga da criatividade. Em primeiro lugar, um preguiçoso é capaz de trabalhar com mais intensidade, por mais tempo seguido e com mais empenho do que outra pessoa qualquer. E isto acontece quando está a fazer exatamente aquilo que quer ou então, relativamente ao que não quer, se já não pode adiar mais. Assim, normalmente um preguiçoso apresenta resultados impressionantes designadamente do ponto de vista da criatividade.

 

Voltando ao Pessoa, ninguém poderia refletir daquela maneira tão esmagadoramente profunda  e evidente estando sempre em movimento físico e inerente ocupação mental. Levantar às 8h, tomar banho, lavar os dentes, vestir o adequado, pequeno almoço, sair, entrar no carro, andar no trânsito, estacionar, pagar o parque ou o parquímetro, subir ao local de trabalho, entrar na rotina, olhar para o relógio, sair para o almoço, restaurantes cheios, voltar do almoço, olhar para os papeis, ouvir o telefone, sair às 7h, voltar para o carro, para o trânsito e para casa, quem faz o jantar? - se houver empregada melhor -, telejornais e talvez uma novela brasileira  para relaxar e um livro para adormecer.  É claro que os carros podem ser autocarros, as crianças eventualmente existirão, o escritório pode ser uma fábrica ou a caixa de um supermercado. E tudo fica ainda pior. Mais difícil.

 

Por outro lado, tenho uma amiga que é pintora. Nunca fez nada na vida para além disso e por isso nunca tem dinheiro para nada. Também não é fácil. Se o corpo não está muito agitado, a cabeça pode não descansar com preocupações, sendo que a fundamental se prende com a necessidade de arranjar forma de pagar as contas.

 

Creio que, por sorte de ter nascido no sítio certo, Pessoa não passou por grandes dificuldades financeiras. E aí está o resultado. Um supercriativo. Uma obra espantosa. E acima de tudo,uma dádiva para todos nós.

 

Mas Pessoa é só um exemplo. E nem todos podem ter o mesmo génio, evidentemente. Porém, se o mundo e a vida fossem perfeitos, os preguiçosos não existiriam, os atuais movimentados dar-nos-iam coisas com mais substância humana e com certeza seriamos todos muito mais felizes.

 

 

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