Fui à Gulbenkian ver a exposição do Amadeo de Souza Cardoso. Gostei muito de muita coisa, mas não saberia escrever sobre isso. Tenho pena.
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Fica, então, apenas a minha visão de um só quadro: "O luto, a cabeça e a boquilha"
Amadeo de Souza Cardoso não tem olhos. Pelo menos, não tem olhos que se lhe vejam. Ou, de outro modo, não se lhe vêem os olhos. Este é, talvez, o traço mais notório e o elo comum a todas as criações do artista sobre rostos de gente, em dada fase da sua obra.
As suas cabeças humanas nada mostram a partir de dentro das enormes órbitas escuras que ostentam. É mesmo assim o quadro a que chamou: “a cabeça, o luto e a boquilha”. Uma plasticidade sinistra que chega onde quer: ao arrepiante, ao revoltante e ao incomodativo. Uma obra emergente de um mesclado de tons escuros sobre o sinistro verde cipreste, onde o vermelho do sangue se impõe - numa subtileza que o ostenta. E os olhos que, sem dúvida, existem estão quietos e invisíveis, envoltos naquela escuridão assustadoramente intrigante. Fica a impressão, que é quase uma certeza: aqueles olhos não vêem como deviam ver. Não vêem claramente. Como é, por outro lado, certo, também, que tais olhos não se querem deixar ver.
A verdade é que o rosto do homem que tem os olhos escondidos não precisa de olhos para que o vejam. É fácil observar que o homem que está de luto veste um fato muito elegante e fuma por uma boquilha. Está de luto. O luto veio da morte e, no entanto, nota-se bem que é precisamente a morte que ele não quer ver. Veste-se com requinte e fuma com boquilha para parecer mesmo requintado, frívolo, superior, divorciado das menoridades, do que é realmente humano. Ele fuma de boquilha com desprezo pela vida e pela morte. Como se fosse outro e estivesse num patamar mais acima. Como se acreditasse na eternidade que é própria dos deuses. Uma classe material-espiritual de seres muito superiores à qual ele, por força de alguns dos seus marcadíssimos traços pessoais, acredita pertencer.
Note-se que ele não vê a eternidade como vida. A eternidade não é vida nem morte. É outra coisa. Outro estado. É algo que se move num plano de beleza e de prazer permanentes. É isto que os seus olhos envoltos de escuridão vêm. Por isto, quem vê o rosto, diz que tais olhos não vêm bem.
O sangue na boca é uma prova ou, pelo menos, um sinal do glaucoma. É verdade, aqueles olhos vêm, mas estão a cegar. Estão a ficar cegos, num processo gradual de degradação fisiológica provocada pelos equívocos, pais dos erros sucessivos. De ilusão em ilusão a doença agrava-se e os olhos estão quase cegos. Não vêm, portanto, o sangue que escorre da sua própria boca. Da boca dos olhos. Da boca da alma. A alma está a apagar-se na mesma proporção em que os olhos cegam. A morte está mesmo ali. Os nervos, esses, nunca souberam sentir. O sangue escorre, provando a parte de humanidade menor daquele ser. O descontentamento de todos os homens que queriam ser como deuses. O inconformismo desfocado da maior parte dos seres humanos.
O sangue é o inequívoco sinal da destruição das suas ilusões sobre a hipótese de ser divino. Ele é de carne e osso e vale bem menos do que o fato elegante e da boquilha (que lhe dá ainda mais requinte). Ele vendeu a alma ao fato e à boquilha. Agora a sua vida está gasta pelo uso, enquanto o fato e a boquilha brilham de luxo e lustro. É que a vida não se pode trocar por outra quando está gasta pelo uso. A vida não se compra com dinheiro, como os belos fatos e as irradiantes boquilhas.
Remira-se o quadro, a obra, uma vez mais. A dúvida assalta-nos: Poderá ser que o homem de luto está a fazer o luto pela sua própria morte? Será que foi ele quem morreu? Pode ser que a cabeça pertença ao morto. Que os seus olhos estejam mesmo definitivamente apagados. Que o fato brilhe em função da extrema qualidade do tecido e da preciosidade do corte. E que a requintada boquilha já esteja apagada – o que pouco importa pois a sua função não é essa.
A cabeça pertence a um ser ridículo. Neste ponto, dúvida não há.