Vinte anos tinha Teresa quando a mãe lhe entrou inopinadamente no quarto. Primeiro, Amélia elevara os nós dos dedos da mão direita fechada. Batera com eles levemente na madeira lacada de branco. Envolveu o puxador com a outra mão e rodou. Antes de empurrar, sentiu a pele envolvida pelo calor dos materiais. Um calor que nascera do surpreendente aspeto de vida, não singular mas plural, pulsante no interior do quarto. Um calor que se espalhara por todas as suas proximidades e que, agora, lhe aquecia os percursos sinuosos do interior das suas próprias veias azuis. Sim. Bateu à porta com os nós dedos afetados pelos aros de ouro e prata. Mas fez tal gesto na passada. Ainda se imaginavam os sons dos ecos daquelas ligeiras batidas, e já os seus pés se encontravam quase um metro para dentro do quarto da filha. Não imaginava sinceramente nada do que iria assistir. Confrontada com tudo o que de material se apresentava sob os seus olhos espalhados por espaços muito bem determinados daquele quarto, desejou não ver. Pregou os olhos vagarosamente no chão, deixando-os ficar por lá incapacitada. Durante aquela lenta e pesada fração do tempo, foi-lhe concedido apenas o espaço para pensar Teresa enquanto sua. Unia-as um amor fundamental. Não podia perder a filha. Esta era a maior imposição da sua vida. Teresa igualmente não podia perder aquela mãe. Cada sentimento individual transcendia palpavelmente a matéria, fluindo por todos as saídas dos corpos em direção ao outro e fundiam-se ambos num encontro memorável, ligando cada uma destas criaturas eternamente.
Subitamente, Amélia interrompeu-se no pensar sobre a filha. E ponderou gravemente nas razões pelas quais acabara de quebrar um hábito tão fundamental como aquele que tinha instituído. O de nunca se transpor portas apenas fechadas por não estarem trancadas. Porém, realmente não sabia. Considerou então que não sabia porque talvez não fosse possível saber. Certos eventos poderão ocorrer sem razão e com desígnio motivados pelos resultados que impõem. Certos eventos são factos que simplesmente têm de acontecer, assumindo a sua existência a partir dos atos mais ilógicos e por isso menos previsíveis. Desta vez, como não sucedeu há muitos anos no passado, há mais de quinze anos, a porta do quarto não se encontrava trancada e, no entanto, a tragédia de novo lhe acontecia. Porém, o pânico não a tomou porque não ouviu o estalido do trinco que fecha. Apesar disso, com o que lhe sucedia agora, Amélia temeu voltar a sentir o abandono. Uma perda de um afeto fundamental. Algo igualmente irreparável. Desta vez a filha. Teresa poderia agora desejar fugir-lhe. Por vergonha ou por revolta. Por qualquer razão que Amélia não conseguia muito bem observar. Teresa deixara de ser quem era aos seus olhos. Não era afinal quem ela pensava. Havia uma parte desconhecida que agora se revelava. A filha andara a representar. Ou melhor, a mentir. Não sabia que a filha lhe podia mentir. Ambas tinham, aliás, orgulho nisso. Na verdade. De viverem vidas desassombradas dentro daquela casa onde não vivia mais ninguém.
Afastou-se dali. Como se a porta do quarto estivesse trancada e por isso jamais tivesse sido aberta. Fez como se fosse um sábado normal de há mais de quinze anos atrás. Pareceu-lhe inclusivamente ouvir música vinda lá de dentro. Teresa haveria de aparecer para o almoço. Comeriam juntas tudo ainda quente. E conversariam um pouco sobre nada de especial. Não seria preciso tocar no assunto. Haveria de se habituar à nova ideia que tinha agora sobre a filha. E só não seria assim se Teresa decidisse fazer outra coisa qualquer. O que Amélia não desejava.
Teresa ficou estendida na cama. Silenciada também por dentro. Sem igualmente pensar em nada. Nada respondia em si. A rapariga estava ao lado dela. Igualmente em silêncio. Nuas. Chamava-se Madalena. Madalena tentou depois abraçar Teresa.
Madalena: Amo-te.
Brutalizada, Teresa ressuscitou. Mandou-a embora. Ela foi sem poder dizer nada. Teresa nunca mais lhe quis falar. Em seguida, Teresa ficou a observar os desenhos no candeeiro do teto. Distraiu-se assim. Foi então que sentiu as lágrimas grossas e muito quentes a rolar a partir dos cantos dos seus olhos. Eram tantas que nem pareciam lágrimas. Sentiu-as mais como fios de água quente a descer rapidamente até às orelhas. O corpo respondia com espasmos abdominais. Depois foram os sons. Soltaram-se. Meteu a cabeça entre os braços e ficou ali um bom bocado em convulsão. Finalmente, ficou calma. E sentidamente lúcida. Levantou-se. Trancou a porta do quarto e foi tomar um banho. De seguida, vestiu um pijama e voltou a meter-se na cama. Adormeceu.
Nunca chegou a aparecer para o almoço, que esfriou. E Amélia não se serviu. Teresa esteve vários dias impossibilitada de ver a mãe. Por vergonha. Amélia, por seu lado, também não a procurou. De vez em quando, corria até à porta do quarto de Teresa. Experimentava a fechadura. Trancada. Então, encostava o ouvido. Afastava-se e aguardava na esquina do corredor pelo som dos passos da filha para fora do quarto. Afastava-se quando por fim o escutava. O telefone preto da sala passou a tocar com insistência. Ninguém atendeu. Num sábado Teresa apareceu para almoçar. Estavam ambas mais magras. Conversaram um pouco sobre nada de especial. Como Amélia desejara.