Teresa teve a certeza de que ela ia para casa de Madalena. Deixou-se ficar imóvel ali com a porta do prédio fechada nas suas costas a olhar. Como que à espera dela. Não era mais velha do que a sua própria filha. Teresa notou o cabelo que, preso na nuca, era perfeita e acetinadamente louro. Muito liso. Embora espesso. A figura era esguia e bem moldada. Quase tão alta como Clara, embora ligeiramente mais magra. Não muito ao perto, distinguiam-se particularmente os gestos. E Teresa viu que ela soltava graça e delicadeza em cada movimento. Entretanto, agora que já estavam ali mesmo a um metro, podia ver perfeitamente a cara dela. Notou então que, conferindo profundidade ao rosto anguloso e coberto de sardas, tinha desenhados uns incomuns olhos azuis quase turquesa, oblíquos como amêndoas. Por fim, quando estava já a virar-se para fora dela e deu um passo para sair dali, ela sorriu-lhe. E os gestos de Teresa paralisaram-se por efeito de tal sorriso. A expressão dela evoluíra subitamente em direção ao céu. A boca, de dimensões comuns, ficou enorme sobre os dentes brancos perfeitamente alinhados. Todas as sardas brilhavam em tom laranja. Os olhos iluminaram-se e mudaram de cor. Teresa nada fez. Não sorriu. Porque não pôde alcançar exatamente a primeira impressão que lhe causou a miúda. Porque ao espírito lhe sobrevieram coisas muito boas e outras muito más. E estas coisas conjugaram-se todas dentro de si de um modo desagradável e estranho. Depois Teresa conseguiu destruir a incómoda sensação e recompor a imagem dela, reduzindo a pessoa ao que via. Uma rapariga atraente. Saiu dali. Ela entrou no prédio.
Madalena: Joana, estou a trabalhar. Não era suposto estares aqui.
Joana: Se me tivesses atendido o telefone...
Madalena: Pois. Mas não pude. Esteve sempre desligado. Estou a fazer uma pesquisa. Não posso ser interrompida. De qualquer maneira, não tínhamos combinado nada para hoje.
Joana: Sim. Mas costumamos falar todas as manhãs. E hoje não falámos. Fiquei preocupada.
Madalena: Preocupada com o quê?
Joana: Pronto. Não foi bem preocupação. Tive saudades tuas. Além disso, é hábito almoçarmos juntas.
Madalena: Mas não pode ser. Não podes vir assim. Cada vez que interrompo o trabalho tenho que voltar atrás e reanalisar uma série de coisas.
Joana: Mas hoje não paras para almoçar?
Madalena: Já almocei. Hoje almocei mais cedo.
Joana: Podias ter ligado. Eu vinha mais cedo.
Madalena: Estavas nas aulas. E depois tenho mesmo que recomeçar o trabalho. Hoje não é um bom dia para nós. Já te disse.
Joana: Não sei porquê mas estás estranha hoje.
Madalena: Sim. Estou um bocado cansada e irritada por causa disso.
Joana: Quando vinha a entrar vi a mulher mais bonita que alguma vez vi na vida. Saiu daqui. Espero que não tenha sido cá de casa.
Riu-se.
Madalena: Joana, fala-me com franqueza. Isto diverte-te? Esta história comigo. O que anda uma miúda da tua idade a fazer comigo?
Joana: Eu estou apaixonada por ti. Divirto-me, como assim? Tu é que parece não queres nada comigo. Só estamos juntas há um mês e tu estás sempre cansada. As coisas já não são como no princípio.
Madalena: Joana, as coisas nem deviam ter começado. Sou tua professora.
Joana: Tu só me dás uma cadeira de opção uma vez por mês.
Madalena: Sou tua professora. Sou muito mais velha. Nada disto é ético nem decente. E...
Joana: Sempre esta conversa. Só não fizeste esta conversa na primeira semana. Nessa altura era tudo alucinante. Mas havia tempo para conversa. E não era nada deste tipo. Temos muitas coisas em comum. Coisas de que gostamos.
Madalena: Tens razão. Desculpa. Tu és linda e inteligente. Atrais-me muito. Mas é como te disse já. Não é para continuar. Não tem nada a ver contigo. Ou melhor, tem a ver com a tua idade. Como te disse logo, não posso agora envolver-me com ninguém. Se fosses mais velha, poderíamos viver isto. Fazer amor quando quiséssemos, e por aí. Mas tu és muito nova para estares agora metida numa relação cínica. Não quero que percas a inocência por minha causa.
Joana: Eu não sou nenhuma inocente. Não és aminha primeira mulher. Já me magoei antes.
Madalena: Não é isso. Vês como és inocente? Tu não sabes o preço de viver uma relação sem compromisso. Aliás, começas a saber. Estás aqui agora porque eu não te atendi o telefone. Porque não me passou pela cabeça ver-te hoje. Numa relação assim dá-se pouco ao outro. Não te sentes rejeitada? Sentes, claro. E isso é péssimo. Eu não sou o tipo de mulher que se alimenta dessas coisas. Fazes-me muito bem ao ego. E isso é que é péssimo entendes? Contigo projeto-me na minha própria juventude.
Joana: Mas tu és tão jovem e tão bonita.
Madalena: Não sou tão jovem. Pareço bem. Mas durante mais quanto tempo? Como toda a gente, assusta-me um bocadinho a idade. Contigo posso viver na ilusão de que a velhice ainda vem muito longe. Que tenho vinte anos como tu. Mas a verdade é que tenho quarenta.
Joana: Mas não sentes nada por mim? É que se vais dizer isso, eu digo-te já que não acredito.
Madalena: Sinto, claro que sinto. Uma atração enorme por essa beleza e por essa juventude, como estou a tentar explicar-te. Fazer amor contigo é uma aventura. Uma novidade. No entanto, não posso. É como se te estivesse a usar.
Joana: Mas tu não me fazes mal. Não me fazes sofrer. Aliás, sinto-me sempre bastante feliz quando estou contigo. Tu não me usas, Madalena.
Madalena: Isso tem prazo. Uma pessoa quer mais duma relação. Não te vai chegar esta vida de vires aqui ter comigo para nos metermos na cama. E claro que te uso. Estava a tentar explicar-te isso. Mas tu não entendes.
Joana. Por hoje já me chegava fazer amor contigo.
Sorriu.
Madalena: Não posso, Joana. Hoje não. Hoje tenho muito trabalho. Já te disse. Lá estás tu. Parece que isto te diverte. Andares metida com uma mulher com idade para ser tua mãe.
Joana: Não penses nisso. Não procuro em ti uma mãezinha. Aconteceu. As minhas namoradas costumam ser da minha idade. Nunca tive fascínio por mulheres mais velhas. Acontece que gosto de ti. Muito.
Madalena: Eu também. Gosto muito de ti. E é por isso que...
Joana aproximou-se mais dela. Madalena ficou parada.
Joana: Não quero ouvir mais nada hoje.
Joana pousou sobre o braço de Madalena, apertando-o com firmeza. E cegou na escuridão dos olhos dela. As bocas molhadas misturaram-se e prenderam-se quando elas pressentiram que iam começar a voar. Colaram-se os corpos por força do impulso irresistível que as levantava no ar. Perderam-se das mãos trémulas que divagavam. Entraram no quarto sem luz. Madalena encostou-a à parede pela zona do ventre. Despiram-se com pressa. Madalena entrou dentro dela como se quisesse passar por ali toda inteira. As pernas de Joana fechavam-se em volta da sua mão. Madalena empurrava-se para dentro. E ouvia-lhe os murmúrios da voz dorida e plangente envolta em suspiros estendidos. Joana indicou a cama e caiu nua sobre o colchão firme. Madalena pressionou-a pelas costas e voltou a entrar. E a sair. Uma e outra e mais outra vez. Joana quebrou o corpo no prazer arrancado por aqueles atos ferinos. Rodou então para Madalena. Por baixo dela. Agarrou-a pelos ombros com os longos dedos de aço. Mordeu-a na boca desfeita. Madalena sangrou hemorragicamente. Puxou Joana a si pela nuca e espalhou-lhe o sangue pelo pescoço. Pelos seios. Joana respirava por entre os cabelos de Madalena. Ocorreu-lhe a violenta saudade do sabor dela. Foi lá. Com fome e sedenta. Comeu e bebeu pelo tempo do desejo particularizado. No fim, respirou profundamente e fechou os olhos que ardiam. Madalena pousou-lhe as mãos na cabeça. Olhou-lhe os cabelos espalhados sobre as virilhas. Molhados nas pontas. Ficou parada algum tempo. Assim a olhar. Num enlevo extático.
Depois de Joana sair Madalena pôde finalmente assentar os pensamentos sobre Teresa. “A mulher mais bonita que Joana já vira”. Sorriu. “Também eu”. Teresa tinha razão num certo ponto. O tempo pode aniquilar a dor se os espíritos não se agoniam em vazios. Agora que a voltara a ver compreendia que era como ela dizia. Morta a dor, muitas coisas lhe sobrevivem. A dor que Teresa lhe causara há muito que não era dor. Era lembrança da dor. Só depois de revê-la é que pôde ver esta diferença. Estava assim para já e afinal grata a Teresa por ter voltado.